Originalidade profunda da obra de Paula Rego advém do cruzamento de múltiplas influências, até contraditórias.
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O que aconteceria se misturássemos elementos grotescos e cómicos q.b., a meio caminho entre o abstrato e o figurativo, acrescentando-lhes influências do surrealismo, sem esquecer abundantes referências ao imaginário popular?
A resposta não andaria decerto muito distante das linhas mestras da obra de Paula Rego, cuja originalidade advém precisamente do cruzamento de elementos distintos e até opostos.
Se, de há longas décadas a esta parte, o estilo da artista é identificável com facilidade até por qualquer leigo na matéria, o cenário era bem diferente nos anos de aprendizagem. Durante o período em que estudou na Slade School of Fine Art, entre 1952 e 1956, o seu traço estava ainda refém do movimento abstrato. Nesses tempos, Joan Miró era a referência maior da jovem Paula Rego.
A escolha do célebre artista catalão como modelo continha um lado provocatório, por estar nos antípodas do estilo figurativo que o ensino em Slade então propunha. Mas se o estilo próprio de Rego ganharia maior desenvoltura à medida que foi absorvendo mais e mais influências, beneficiando do contacto com um meio cultural e cosmopolita tão absorvente como Londres, isso não significa que as raízes portuguesas foram sendo diluídas de tudo quanto criou desde essa altura. Bem pelo contrário.
A infância continuou a estar muito representada no seu imaginário artístico, através de figuras distorcidas que representavam tanto bonecas como bichos papões. Os arquétipos dos contos de fadas estão representados na sua pintura, mas contrabalançados por um lado mais sombrio. O resultado é uma combinação ora sedutora ora repulsiva de um imaginário que nos habituámos a associar a uma espécie de doçura materna.
Fragilidade aparente
O ambiente autoritário em que cresceu nas décadas de 30 e 40 também influenciou a produção artística. Um dos exemplos notórios é "Salazar vomiting the homeland", quadro de 1966 em que o corpo é representado de forma perturbadora. Mas foi sobretudo no campo social que os "anos portugueses" de Paula Rego se revelaram mais relevantes na sua obra. A repressão sofrida pelas mulheres, cerceadas de quase todos os direitos elementares, é fortemente evocada nas suas pinturas de um modo que roça a crueldade, com o objetivo claro de sacudir o espectador da indiferença.
O feminismo é recorrente na obra da artista, mas sem se ater aos seus próprios condicionalismos. Dir-se-ia que Rego assimilou esses preceitos, mas sem abrir mão do individualismo feroz. É o que vemos num quadro de 1994 intitulado "The bride", em que uma noiva madura parece confrontar o visitante com um ar entre o pensativo e o nostálgico, como se meditasse no valor da mulher na sociedade. Há, todavia, abundantes exemplos de mensagens menos subliminares noutros quadros seus, em que aborda a violência doméstica, o aborto ilegal ou o tráfico sexual, através de lobisomens que ameaçam jovens indefesas mas na realidade bem mais fortes do que poderíamos pensar.
Da mesma maneira, os homens, apesar de associados à força, surgem muitas vezes como seres frágeis que encontram proteção nos braços femininos.
Um desafio às normas patriarcais que não é indiferente ao seu olhar tão subversivo quanto original.