Livreiro da Poesia Incompleta comprou os milhares de títulos da extinta editora. Gesto "não foi norteado pelo negócio", admite o comerciante, que se recusa "a cavalgar as ondas das 'bestas céleres'".
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Mário Guerra hesita em utilizar a palavra "negócio" para apelidar o acordo que fez com Fernanda Mira Barros para a compra da totalidade da coleção de poesia da extinta editora Cotovia. "Foi um processo simples", diz o livreiro da Poesia Incompleta, em Lisboa, relembrando os contactos frequentes que mantém há anos com a editora fundada em meados da década de 1980 por André Fernandes Jorge.
São "alguns milhares de títulos", salvos de um abate quase certo, que passam a estar armazenados neste edifício situado na Rua de São Ciro. Acomodá-los não será tarefa difícil, seja nas prateleiras ou no espaço traseiro da livraria.
Mais complicada é mesmo a tarefa de eleger os seus livros favoritos no meio de tamanha oferta. A custo, refere Hans Magnus Enzensberger, Manuel Resende, A. M. Pires Cabral, Henri Michaux, Antonio Machado, mas a sua vontade é "citá-los a todos, tão grande é a qualidade desta coleção".
Passadas algumas semanas sobre a compra, Mário Guerra reconhece que foi o leitor inveterado e não propriamente o livreiro a determinar o impulso da compra.
"Do ponto de vista racional e do negócio, talvez tenha sido uma imprudência, mas eu como pouco e não tenho automóvel. Os meus gastos são reduzidos...", adianta, convicto, porém, de que "se não fosse um pé-rapado, comprava a totalidade da coleção", que inclui ficção, ensaio e teatro.
Se o gesto de compra "não foi norteado pelo negócio", o livreiro admite que alguns livros agora adquiridos integram o chamado fundo de catálogo e possam despertar interesse junto de vários leitores. Até porque as grandes redes livreiras costumam dar como esgotados títulos que apenas não estão nas suas estantes.
"Pesca à linha" literária
Lógica contrária na sua atuação enquanto livreiro procura ter este antigo gerente do bar do teatro A Barraca. A devoção pela palavra poética fê-lo abrir em 2008 a única livraria dedicada à venda de livros de poesia. Após um interregno de alguns anos, retomou o projeto em 2018 e, com ou sem pandemia, procura mantê-lo minimamente viável. Além de recusar-se a "cavalgar a onda das "bestas céleres"", de que falava Alexandre O"Neill, Guerra diz praticar uma espécie de "pesca à linha" literária, ao atrair o leitor "um a um".
O cenário só não é ainda mais sombrio porque as vendas online vão tendo um peso maior. Na sua conceção particular de livreiro, como "uma ponte entre autores e leitores", nada substitui a compra presencial: "A compra online é uma experiência amputada, embora até dê menos trabalho. É como uma casa sem janelas. Só a ida a uma livraria permite abrir uma página ao acaso e deixarmo-nos seduzir pelas palavras..."
Livros em stock de outros géneros podem ainda ser abatidos
Assegurada a sobrevivência da coleção de poesia, falta agora saber o destino dos largos milhares de livros pertencentes a outros géneros (sobretudo de ficção e ensaio) que pertencem ao stock da Cotovia.
Apesar de a editora ter cessado atividade no passado mês de novembro, tem sido possível ainda efetuar encomendas, oriundas tanto de livrarias (sobretudo independentes) como de particulares. A editora, Fernanda Mira Barros, adverte, porém, que a situação é provisória e o prazo vai esgotar-se "nos próximos dias". Como os contactos exploratórios feitos por vários interessados resultaram em propostas consideradas demasiado baixas, o abate dos livros é, neste momento, o cenário mais provável. No meio milhar de títulos que integram este espólio encontram-se autores como Virginia Woolf, Robert Louis Stevenson, Martin Amis, Bernardo Carvalho e Doris Lessing.