Wednesday, Rema, Pet Shop Boys, St. Vincent e Central Cee: um doce para quem adivinhar qual deste cinco foi o "worst of" do "best of" do dia 3 do Primavera Sound Porto. Spoiler alert: antes disso, há 5830 caracteres de rendição ao sistema nervoso central dos Darkside.
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Não é tarefa impossível definir a excecional eletrónica nova-iorquina de Darkside, projeto ambiental experimental do músico Nicolás Jaar e do guitarrista épico Dave Harrington que fechou os palcos abertos do 3.º dia do Primavera Sound Porto. Mas é um encargo destinado a falhar mais ou menos espetacularmente porque todos os sentidos serão precários para a designar. Ou melhor, é como se os sentidos estivesse trocados e tivéssemos que ver com os ouvidos ou ouvir a tatear.
Não é só, também, porque aquela música requintada e avant-garde desafia géneros na sua improvisação ao vivo - sim, esta eletrónica é produzida ao vivo e não há Shazam que a consiga conter e demarcar -, é sobretudo porque é música simultaneamente cerebral e visceral, translúcida e espessa, orgânica e estranha e extravagantemente familiar.
Tente-se (mas a tentativa vai indubitavelmente falhar): ver Darkside ao vivo é como viajar pelo interior do sistema nervoso central de alguém ou de alguma entidade intelectiva extraterrena. Essa entidade só se dá a ver através de um espelho partido em que o ângulo dos raios refletidos não é igual ao ângulo dos raios incidentes. Tente-se mais (para evidentemente tentar falhar melhor): Aquela música é poesia redigida sem palavras, é feita só com números. Tente-se ainda um malabarismo de híbridos: isto é rock espacial sideral?, é disco-sound retorcido?, é um ornamento de rock progressivo?, é pop espatifado?, é funk tortuoso astral?, é retro-futurismo subliminal?, é blues digital?
Além disso: para aumentar ainda mais a confusão e o discernimento emocional, o corpo desta música é permanentemente mutante e vemos, ou melhor pressentimos confusamente na nossa intuição, que ela vai continuar a mudar de forma quando a visitarmos mais tarde no hipocampo da memória. Mas, e a garantia é absoluta, aquela música dá-nos ordem para dançar - mas a dança é na pista de um clube sem chão. Garante-se também: depois de o concerto acabar, aquilo continua a tocar e a ressoar dentro de nós, como se as sinapses neuromusculares continuassem furiosamente o seu labor e não conseguissem desistir de montar um puzzle que não vem com todas as peças. Foi bom? Foi excecional - mas de uma forma cerebrina e total.
Um espetáculo misterioso, dramático e inovador
A encosta do palco Super Bock dos Darkside estava a 2/3 com público quase exclusivamente maduro. Metade desse público dançava à frente num transe fanático e lento, compondo uma manta de cabeças que ondeava em diferentes direções e sentenças; a outra metade via aquilo de forma cética e atentamente sentada.
No palco, onde houve sempre fumo a esfuzilar, numa parte do tempo estava-se na penumbra só cortada por uma luz amarela que vinha de trás dos músicos; na outra parte estava-se debaixo de explosões de luz forte de uma brancura feroz que sofria síncopes e varria a assembleia com feixes retos, relva afora, colina acima, a roçar-se em tudo até às últimas árvores do Parque da Cidade do Porto. Às vezes essa luz assumia as cores do caleidoscópio.
Estavam lá em cima três homens que permaneceram sempre concentrados no seu labor e não falaram connosco, a não ser depois da penúltima música do seu set de duas horas, das duas às quatro da manhã.
Um trio em suprema concentração
Nicolás Jaar (o Nicolás é da sua metade chilena, a outra metade é norte-americana), que vestia um fato bege que o fazia parecer um guarda-livros judeu, é o cérebro do grupo e ocupava-se a mexer no seu arquipélago de botões e teclados; também cantava, mas o canto é esparso e estratosférico e a voz sai sintetizada em falsete como se fosse passada por vento ou entrasse por um funil de metal; esteve sempre sentado ou curvado como um sete.
Dave Harrington, cabelo de selvagem, blusão de cabedal, pose épica de "guitar hero" recortado na luz negra, grudava-se na guitarra e nos filetes de metal e extraia jorros contínuos de semitons, feedback e outros ruídos que moldava como um prestidigitador de eletricidade estática.
O terceiro elemento era Tlacael Esparza, o baterista que acelerava e travava e comandava implacavelmente o tempo e o modo dos que queriam dançar.
Misterioso e dramático, havia outro elemento inumano no palco: um grande espelho redondo que simbolizava o Globo em continentes partidos, pendurado ao centro, em que as partes se encaixavam e desencaixavam e se moviam a 360 graus quando um vulto muito cuidadoso e lento entrava em palco e o fazia mexer-se através de um guindaste.
Nada, mas mesmo nada é parecido com Darkside
O grupo existe desde 2011 mas só lançou dois álbuns de estúdio ("Psychic", 2013, e "Spiral", 2021), um EP homónimo (2011) e dois pares de singles. Todos os temas terão sido tocados aqui no Porto - a afirmação é condicional: todas as canções foram entrecruzadas umas com as outras sem interrupção de som, à exceção da última, e muitas vezes foi impossível identificá-las cabalmente porque o grupo transforma-as em versões reptilianas e lunares, submetendo-as a uma vigorosa e assanhada experimentação, como se fossem um corpo tratado pelo bisturi de laser de Victor Frankenstein. Ainda assim, foi possível intuir partes plenas das favoritas dos fãs: "A1", "Heart", "Liberty Bell", "Golden Arrow" e a magnífica "Paper trails", a última que tem 4"49" mas que ali foi retesada para lá dos 20 minutos. Foi antes dela soar que Jaar se dirigiu a nós, os seus perplexos devotos, uma única vez. Disse: "Obrigado a todos, obrigado à equipa sem a qual não era possível fazer este espetáculo, obrigado aos fãs. Só temos mais uma canção". E o público explodiu em palmas e veneração, uma explosão que se repetiu no fim quando eles se desavistaram internados na penumbra fora de cena.
Nada, mesmo nada do que já aqui se viu até ao terceiro dos quatro dias do Primavera Sound Porto 2023, que termina este sábado com Blur, New Order, Sparks e Yves Tumor num cartaz que ainda tem 24 artistas, foi parecido com Darkside - nem sequer o primeiro e tão belo concerto que os próprios Darkside aqui deram, na antiga e muito saudosa tenda Pitchfork, em 2014.
Bravo e impossível de domar, foi um espetáculo tremendo.
E o resto do 3.º dia, agora em modo zapping
Passar um dia inteiro no Primavera Sound Porto, que nos põe à frente num pronto-a-comer gourmet deluxe duas dezenas de concertos por dia, durante quatro dias, com cinco palcos num recinto que é um jardim de colinas e clareiras à beira-mar - claro, choveu, sim, e desumanamente, e há mousses de lama no novo grande palco Porto e nesse palco a plateia é plana e isso é péssimo para o conforto e esse palco deveria ser repensado até à extinção - é um experiência brutal e altamente recomendável. E a facilidade com que se passa de um mundo a outro, melhor, de uma galáxia a outra galáxia espetacularmente diferente em coisa de segundos, ou numa mera centena de metros, é uma coisa espantosa.
Sem qualquer ordem particular, e em modo zapping, eis os momentos "best of" (e um "worst of") do resto do 3.º dia.
Wednesday quando tocaram "Bull believer". O quinteto norte-americano de Asheville, que trouxe três guitarras, uma delas slide, e que sulca espaço cósmico entre o alt-rock, o alt-country, o shoegaze e o grunge, e que venera de certeza My Bloody Valentine e Husker Du, teve um momento "woke" antes de tocar essa canção homérica de 8"30"" do novo disco "Rat sai God". Foi quando Karly Hartzman, a aguda e cavernosa vocalista que irradiava felicidade - "o Porto é tão bonito, temos que cá voltar uma semana inteira só para passear, que sorte a vossa, a vossa cidade é tão cool" -, sugeriu, depois de explicar que a canção é dedicada a todos os gays e pessoas trans que têm a vida cada mais impossível nos EUA, e nos disse: "Se querem fazer alguma coisa relativamente a isso, gritem comigo, vão ver, vão sentir-se melhor". A canção é soberba - e claro que gritamos com ela.
Rema: aquele momento em que a nova estrela de 23 anos e 63 milhões de ouvintes no Spotify, e que está a fazer deflagrar o afrobeat planetário da Nigéria, repetia um verso que dizia "I like bad girls like you". Estava a encosta relvada do palco Super Bock deliciada a dançar docemente na brisa e a espantar-se - bom, Rema também faz emo-trap - e o MC da banda começa e não pára de repetir a gritar vezes sem conta por cima dele "Porto-Porto-Porto", ou melhor, para sermos foneticamente exatos, "Pôto-Pôto-Pôto", e o público ondulou todo orgulhoso, inchado e feliz, mesmo os que só são daqui nestes quatro dias.
Pet Shop Boys e quando eles cantaram o "Go west" com o público de braços em coro no ar, e a canção que faz este ano 30 anos soou exatamente como quando a ouvíamos na adolescência, felizes, feéricos e tão febris que acreditávamos que o synthpop era a imortalidade numa pista de dança e durante 5"04"" éramos todos imortais. (Parêntesis: o grupo de Neil Tennant e Chris Lowe mostrou até agora, quando ainda falta mais um dia inteiro de Primavera, a mais bonita cenografia do festival, com múltiplos ecrãs móveis e neons tremulantes a preto e branco, vistosos mas elegantes como as listras de Saint-Laurent ou do melhor Lagerfeld que não é barroco).
Saint Vincent quando tocou "New York". Apesar de a canção parecer que tinha o som baixo ou baço e de ter sofrido uma inesperada conjugação irregular do verbo lentar, é uma das suas mais comoventes e ficou a troar na encosta cheia do palco Vodafone. Sobrecarregada de acordes delicados, dramáticos e pungentes de piano, ela engasga-nos com a letra comovente que atira como um aguilhão ao coração: "Tu és o único "motherfucker" nesta cidade que sabe lidar comigo", e depois, num suspiro recorrente, ela expõe-se à vulnerabilidade numa linha simples e lancinante: "Nova Iorque não é Nova Iorque sem ti, meu amor". (Parêntesis para apontamento de figurino: Anne Erin Clark, a sexy St. Vincent, com o seu novo Bob loiro-metálico, vestia os mais micro "microshorts" de todos/as os/as artistas do festival).
E agora o melhor "worst of" do dia: praticamente todo o set de Central Cee. O rapper de hip hop e trap que se chama Oakley Neil H. T. Caesar-Su, ao vivo - dizer "ao vivo" é um insulto para todos os músicos que ali estiveram, estão ou vão estar no festival a laborar - é só foguinho fátuo entufado e pedante numa overdose de luzes e jatinhos de fumo e flamas. Com um MC histriónico e profusamente grunho por trás, que também gritava "Pôto-Pôto, mas que cheirava por todos os poros a contração emocional, teve menos de 1/3 do público que tiveram anteriormente no palco maior Baby Keem, Kendrick Lamar, Rosalía ou os Pet Shop Boys. Bem feito: a meio do concerto despenhou-se ali uma chuvada tal que boa parte do seu público todo pueril lhe fugiu numa galopada desembestada, a patinar em espargatas na lama, com dois ou três tralhos muito cómicos que salvaram a noite do loooongo bocejo que foi o seu show.