"Foi como pintar uma paisagem de forma realista e depois convidar outros a esborratá-la e a trazer surrealismo".
Corpo do artigo
É com esta metáfora que Hélio Morais, baterista dos Paus e Linda Martini, descreve "Murais", nome do projeto e do disco com que se estreia a solo e que será hoje apresentado na Casa da Criatividade, em São João da Madeira, e amanhã, no Hard Club, no Porto.
O ponto de partida foi um piano de Sufjan Stevens que apareceu na sala de ensaios dos Linda Martini e a vontade de Hélio de se colocar numa posição "desconfortável": "Quis obrigar-me a compor num instrumento que não dominava, o que é algo que permite fazer descobertas e renovar a motivação de ser músico". O baterista já metia a colher nas composições das suas bandas, e o gosto pela escrita vinha desde a época em que surgiram os blogues, mas aqui propôs-se fazer "canções do princípio ao fim e gravar os instrumentos todos, das teclas ao baixo, dos sopros à bateria". Quis, sobretudo, fazer canções pop e falar de temas mais pessoais, tudo aquilo que era "menos consensual nas bandas, coisas que não podia estar a impingir aos outros".
Mas sem os "outros" não teria havido "Murais". Porque se Hélio pintou a tal "paisagem realista", que se traduziu na simplicidade das composições, houve alguém para a esborratar. "A vantagem das estruturas simples é que deixam uma forma aberta que permite a intervenção de outros. Quando o tema tem mais densidade torna-se também mais impenetrável", explica o músico ao JN.
um certo cubismo
A principal intervenção veio do Brasil, de Benke Ferraz, guitarrista dos Boogarins que produziu o disco e acrescentou camadas às composições de Hélio. E o que era simples passou a ser profuso, com samblagem abundante, elementos sintéticos, violinos e saxofones. Nalguns temas, como "Oi, velho" ou "Não sou Pablo, nada muda", está mesmo presente um cubismo que lembra Animal Collective, mas as canções desembrulham-se e regressam a uma simplicidade original, feita de versos e refrães que falam de relações com pessoas e lugares, temas autobiográficos ou certos tipos de personagens, "difíceis de aturar e que todos temos à volta", apresentadas em "Marialva" e "Catatua".
Outras contribuições, também brasileiras, vieram dos cantores Giovani Cidreira e Paes, ao passo que a intervenção portuguesa inclui dois músicos dos Paus: João Cabrita, com um solo de saxofone em "Dentes afiados", e Catarina Munhá, com arranjos de violino em "Catatua". Xana, a vocalista dos Rádio Macau, empresta a voz a "Até de manhã".
Este espírito coletivo é revelador da natureza de Murais enquanto projeto, pois o seu fundador não tem grandes certezas de que continue a ser um número a solo. "O nome deriva, obviamente, de Morais, mas é também uma alusão ao meu gosto pelo grafíti e pelas pinturas murais. Quero que tenha abertura a outros músicos." Pessoal e transmissível, o projeto permitiu ao baterista ganhar "agilidade de recursos" e caminha a passo estugado para um segundo álbum.