Aki Kaurismaki: cineasta finlandês de 66 anos fala ao JN da sua Carta Branca na Cinemateca, dos filmes da sua vida, da adição ao cinema e do inverno que passa todos os anos em Viana do Castelo. Revelação: "Já pensei fazer um filme mudo sobre Portugal"
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Realizador de filmes que são já clássicos, como "Leninegrad cowboys", "Contratei um assassino", "Juha", "Nuvens passageiras" ou "O homem sem passado", Aki Kaurismaki explica-nos como se viciou em cinema, como se fez realizador, e por que é que se mantém ligado à Sétima Arte. O seu novo filme vai estrear em Cannes.
O Aki está aqui na Cinemateca, em Lisboa, não só a apresentar os seus filmes mas uma Carta Branca que lhe deram, onde incluiu Murnau, Bresson, Walsh, Erice. São os seus favoritos?
Obviamente são filmes que adoro. Havia outros, como um Kurosawa que queria mostrar, mas as cópias foram bloqueadas por gangsters portugueses.
São filmes que o influenciaram na sua carreira?
Sou um autodidata, aprendi com os outros. O melhor de todos para mim é o Chaplin. Charles Spencer Chaplin. Depois vêm os outros, Buñuel, Bresson, Kurosawa, De Sica, Marcel Carné. Adoro cinema e aprendi de onde podia. Era muito cético para ir para uma escola de cinema.
Qual foi então a sua "escola"?
A minha melhor escola foi a trabalhar. Trabalhei nas obras, numa fábrica de papel, como carteiro. Tive imensos empregos, por vezes só três meses. Mas aprendi imenso com as pessoas. É a melhor escola.
O Aki não nasceu em Helsínquia...
Nasci numa pequena vila no sul da Finlândia. Mas a minha família mudou-se muitas vezes. Estive em cinco escolas diferentes antes de fazer 18 anos.
Que filmes é que via nessa altura?
Via o que podia. O primeiro filme que vi foi um Tarzan. Mas era uma vila, imagina o que passavam lá. Depois mudei-me para cidades maiores, como Helsínquia e via tudo o que podia. Via três ou quatro filmes por dia. Até 1986, quando me mudei para o campo e comecei a fazer filmes. Estava sempre em rodagem.
O que o levou a fazer filmes e não outra coisa qualquer?
Foi por acidente, como acontece com tantos realizadores. Eu queria ser escritor. Escrevi o argumento para um filme com um amigo meu. O meu irmão Mika estava na escola de cinema, não tinha tema para um filme e nós tínhamos esse argumento. Não havia dinheiro, acabei por ser ator. Chama-se "The liar" (O mentiroso), o que me descreve muito bem.
Só tem esse irmão?
Temos duas irmãs, mas não estão ligadas ao cinema. Depois fiquei viciado no cinema. Consegui que em três meses me mandassem embora do serviço militar. Disseram mesmo que era melhor eu ir embora. Disse-lhes que concordava e agradeci-lhes pelo tempo que lá passei. Também aprendi alguma coisa sobre o sistema.
O que fez logo a seguir?
Passava muito tempo a ver filmes, em cineclubes, na cinemateca, nos cinemas comerciais. Arranjei um emprego como carteiro em part-time e via três filmes por dia. Corria de um cinema para outro e depois ainda ia a correr para casa para ver um filme na televisão. Era maníaco por cinema, tinha um caderno onde assentava todos os filmes que via.
Acha que os portugueses veem os seus filmes de uma maneira especial?
Não faço a mínima ideia. Há 33 anos que passo o inverno aqui. Faço hoje 66 anos por isso passei metade da minha vida aqui, mas só uns seis meses, no inverno. O verão é muito quente para mim. O verão é maravilhoso na Finlândia. Temos um jardim, é a minha mulher que se ocupa dele. Gosto muito do verão finlandês, não é muito quente, ainda.
Já fez um filme cá em Portugal, para Guimarães Capital Europeia da Cultura, em 2012. Tem planos para outro filme em Portugal?
Já pensei em fazer um filme mudo aqui. Tenho imagens na minha cabeça. Uma aldeia na montanha, uma rapariga que quer ir ver o mundo. O problema é que percebo o que é "saudade" mas ainda não compreendo o que é a alma portuguesa. É um mistério para mim, ainda estou a estudar o que vai no interior dos portugueses. Até agora ainda não sei. Deve ser algo secreto e não posso fazer um filme sem o saber.
Mesmo "saudade" é muito difícil de traduzir em outras línguas.
Demorei dez anos até encontrar a palavra mais correta em finlandês para traduzir "saudade". É "kaippu".
Tem um novo filme já em pós-produção. É para Cannes?
Vai passar em Cannes, mas ainda não sei em que secção. Pelo menos oferecemos-lhes o filme.
Já passaram seis anos desde "O outro lado da esperança". As pessoas gostam dos seus filmes, porque demorou tanto até apresentar um novo?
Estou a ficar velho. Fiz muitos filmes uns a seguir aos outros. A certa altura uma pessoa cansa-se. E há uma coisa que se chama vida. Estava a trabalhar, trabalhar, trabalhar. Quando acabava um ia para um bar e bebia, bebia, bebia. E começava outro filme. Estava a matar-me. Era uma espécie de suicídio, à maneira de Fassbinder. Descobri que o cinema não é assim tão importante.
O que tem feito entretanto?
Também é agradável passear na floresta e apanhar cogumelos. Por isso, decidi abrandar. Um filme em cada cinco anos está bem para mim. Quando era novo filmava tudo o que me vinha à cabeça, agora passo dois anos a pensar no que devo filmar.
O Aki é um dos raros autores de hoje onde basta uma imagem para se perceber que estamos a ver um filme seu. Essa forma de fazer filmes, que aliás adoramos, considera-a como uma prisão ou os filmes saem-lhe assim naturalmente?
É a minha maneira de fazer. Se tens um estilo, és um felizardo. Mantém-no. Vemos um filme do Bresson e dizemos logo que é do Bresson. O mesmo com Kurosawa, Ozu, Buñuel. É claro que comparado com estes mestres estou num segundo plano, mas esta é a única minha maneira que sei de fazer filmes, é a minha maneira.
Os seus filmes têm um subtexto político...
Se não fosse assim, porquê fazer filmes?
O que pensa da adesão da Finlândia à NATO? Calhou entrar no dia do seu aniversário [4 de abril]...
É um insulto no meu aniversário. Não vai mudar nada. Já há décadas que andam a desenvolver tecnologia de armamento juntos, por detrás das costas das pessoas. Se tivesse podido votar, votaria Não, porque gosto da independência. Mas as pessoas têm medo. 70% das pessoas preferem estar seguras. Se quisermos, é democracia. Para mim é muito triste. A NATO é uma organização de venda de armas, não tem nada a ver com paz. Organizam guerras, para poderem vender as armas deles.