Amélia Muge celebra 30 anos de música com "Amélias", disco que homenageia o papel das vozes femininas.
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O círculo fecha-se, 30 anos depois do seminal "Múgicas". "Amélias", novo disco de Amélia Muge, revisita os traços fundamentais de um percurso artístico exemplar, como o desdobramento sonoro, as vozes a capella ou um forte apego às raízes tradicionais que não exclui o recurso pontual à eletrónica.
Mas este é também um disco do presente, que provavelmente não teria sido concretizado sem o contexto da pandemia. Quem o admite é a própria artista, que sublinha a forma como as alusões à covid pairam ao longo das canções, mesmo que de uma forma raras vezes óbvia. "Interroguei-me ao longo destes tempos sobre o papel da música em situações-limite, como a guerra", afiança a compositora e intérprete, impressionada com a imagem de uma mãe refugiada que procurava suster o choro da sua criança entoando uma canção de embalar.
Disco de síntese, em que "são colocadas novas questões, mas também mantidas as ligações que vêm de trás", "Amélias" não será um manifesto artístico sobre a pluralidade da voz e os seus recursos quase infindáveis? Para a autora de "Archipelagos", "um disco, tal como um ser humano, não tem de ser só uma coisa". É sob essa procura da diversidade que se explica a presença de elementos africanos em "Chove muito, chove tanto", a homenagem ao cancioneiro tradicional em "As alcaparras" ou a episódica incursão castelhana em "Un recuerdo".
tributo à voz feminina
Ao trazer para a sua música influências culturais de outras latitudes, mas também cruzamentos musicais improváveis, Amélia Muge afirma estar apenas a seguir a sua vontade de exploração. "Nada é estranho à minha curiosidade. Há irmandades enormes, até porque as fronteiras não são rígidas. Não somos menos portugueses por fazermos pontes. A Amália e o José Afonso fizeram-no há muito. O papel dos cantautores também é o de baralhar e voltar a dar", diz.
Na interseção de influências de que é feito "Amélias" não será fácil encontrar um denominador comum. A autora, no entanto, garante que existe um elo entre todas estas canções: a voz feminina. Candidatos a Património Cultural Imaterial da Humanidade, os coros das mulheres desempenham um papel que excede em larga escala o campo artístico. "Basta lembrar a sua importância na vida das comunidades", aponta Amélia Muge, que afirma ter pretendido "homenagear todas as vozes que já trabalharam comigo e, por outro lado, celebrar a oportunidade de voltarmos a colaborar".
A efeméride dos 30 anos de carreira é inescapável. Avessa a balanços definitivos, pela dificuldade de comparar tempos muito distintos, Muge não se furta a apontar as mudanças ocorridas, embora sem abandonar as dúvidas: "Ainda não sei o que significa ser artista. Quando faço o meu trabalho posso ser artista, mas fora disso também sou milhares de outras coisas. Hoje talvez esteja mais consciente do que é lançar um trabalho com estas características. Sou alguém que se interroga e tenta desenvolver ao máximo isto de estar viva e verter o que vou aprendendo para o espaço de uma obra".
O diálogo crescente mantido com outras artes, da pintura e fotografia até à literatura, é outra das nuances trazidas pelos anos. Mas a preocupação maior mantém-se. "Quero que a minha obra se mantenha dentro de uma tradição artística portuguesa", reforça.