Micronarrativas escritas ao longo de 37 anos estão reunidas no novo volume "Tisanas", que goza de uma fascinante diversidade.
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A meio caminho entre o diário, os microcontos ou a poesia em prosa, “Tisanas” é uma súmula do modo amplo e tantas vezes difuso – mas sempre estimulante – como Ana Hatherly (1929-2015) concebia o mundo.
Agora reunidos num volume apenas, com edição de Ana Marques Gastão, estes fragmentos acompanharam a poetisa e a artista visual durante boa parte do seu percurso literário (37 ao todo) e são, na sua essência, uma reflexão distendida sobre a matéria de que se fazem os dias, sem que a presunção de sabedoria se interponha pelo meio.
Afinal, como escreve, “não sou um romântico, ou um químico. Em vez de soluções, eu proponho: fusões, isto é, infusões!”. O forte sentido de busca que persegue estas anotações de índole muito diversa sempre rejeitou o insólito, preferindo antes “a verificação do extraordinário”, sob as suas mais variadas formas.
As meditações (ou pausas quotidianas) a que Hatherly se entregava tanto podem ser “quatro gaivotas no cimo de um telhado” em Amesterdão, aforismos desarmantes (“a tristeza é o adoecer do belo”) ou sonhos cuja excentricidade se agarra aos dias, como se não quisesse largá-los.
Na sua fascinante diversidade, as 463 tisanas com as quais Hatherly procurava responder ao assombro da existência entroncam na recusa da lógica formal. “Apesar de ser notório um princípio de lucidez na forma de estruturação orgânica das ideias”, como escreve a organizadora da edição, parecem reger-se na sua grande maioria pelos princípios do livre pensamento e da associação avulsa de ideias.
Estas marcas de ausência de encadeamento formal conferem aos textos uma imprevisibilidade muito forte, fazendo do leitor uma espécie de tripulante não autorizado pelos infindáveis labirintos da mente.
Os resquícios da influência surrealista ou experimental atravessam boa parte dos textos, sobretudo os de uma primeira fase, ao longo dos quais vamos sendo confrontados com poderosas imagens que nos mostram como “o carro elétrico é a ampliação de uma lagosta cúbica” ou “uma cidade habitada por palavras em que cada uma vivia em sua casa com as portas fechadas mas que constantemente se visitavam”.
Desta aparente estranheza resulta uma visão do real que não se deixa aprisionar com facilidade em lógicas redutoras.
