Nascida na Roménia mas hoje com uma carreira internacional, Anamaria Vartolomei estreou-se no cinema aos 12 anos.
Corpo do artigo
Hoje, com 25 anos, foi a escolhida para interpretar o papel de Maria Schneider em "Maria", sobre os traumas sofridos pela atriz após a cena da violação em "O Último Tango em Paris", de Bernardo Bertolucci. O filme já está nas salas e o JN esteve a conversar com a jovem atriz, que também podemos ver neste momento em "Mickey 17", de Bong Joon-ho.
Até que ponto sabe o que aconteceu realmente naquela cena de “O Último Tango em Paris”?
Ouvi muitas versões. Vi o filme há uns cinco anos, quando a realizadora me falou pela primeira vez na possibilidade de interpretar a Maria Schneider. Mas a história tem sido tão fantasiada. Toda a gente tem alguma coisa a dizer, há tantos rumores à volta dessa cena. A Maria Schneider tentou ao longo dos anos dizer a verdade, a sua verdade, mas ninguém a quis ouvir.
Porque razão isso terá acontecido?
A indústria do cinema ainda não estava preparada para ouvir este tipo de testemunhos. As pessoas preferiam acreditar no génio criativo do realizador e na supremacia absoluta que tem durante umas filmagens. Ninguém reagiu porque talvez achassem que era normal. Porque já tivessem visto cenas semelhantes ou por acharem que o realizador tinha o poder de o fazer.
Felizmente, a situação mudou entretanto…
O que mudou hoje é que somos capazes de ouvir, de ter empatia para com as vítimas. Estamos mais a par do que se passa. E perguntamos como é que tal pode ter acontecido. Ninguém se preocupava. Hoje protegemos muito mais o trabalho das atrizes, não as deixamos sozinhas, o trabalho num filme é um processo muito mais colaborativo.
O que sentiu quando soube que a cena da violação não tinha sido consentida?
Senti que tinha sido uma coisa muito violenta. Não consigo imaginar nem de longe nem de perto o trauma que ela sofreu. Aquela cena é tão brutal. Quando a recreei estava rodeada de gente boa, de uma realizadora que adora realizar e adora os atores e as atrizes. Eu e o Matt Dillon tivemos uma coordenadora de intimidade. Toda a gente me fez sentir em segurança, mas mesmo assim senti a violência do que tinha acontecido com a Maria Schneider.
Começou a trabalhar como atriz muito nova. Sempre se sentiu protegida?
Tinha os meus pais comigo nas filmagens, quando era criança. Não são pessoas ligadas à indústria, mas deram-me conselhos muito inteligentes. Como não fazer cedências, não ir para terrenos onde não me sentisse confortável. Foi uma família realmente protetora, deram-me os conselhos que os pais devem dar aos seus filhos. Fiquei com as ferramentas para dizer não quando achasse que o devia fazer. É claro que não é o caso para toda a gente.
Ainda hoje se ouvem muitas histórias de abusos durante as filmagens.
A Judith Godreche e a Juliette Binoche, por exemplo. Mas são atrizes com um certo poder, conseguem lidar com estas situações, imagine-se o que era uma atriz jovem e inexperiente naquela época. Não lhe foi possível dizer que não. É preciso estar bem acompanhado para lidar com estas situações.
Como é que encontrou a sua própria Maria?
Ao princípio quis falar com uma pessoa que trabalhou no “Último Tango” e se tornou amigo da Maria Schneider. Partilharam muita coisa durante uns quinze ou vinte anos. A Jessica encontrou-se com ele mas finalmente eu achei que era melhor não, apesar de precisarmos sempre de algumas informações quando interpretamos o papel de alguém.
Que caminho decidiu então seguir?
Nos primeiros ensaios queria muito falar como ela, andar como ela, mas estava a tornar-se muito superficial. Quando ela fez “Profissão: Repórter” queria afastar-se da sua imagem sexualizada. Passou a ter uma aparência mais de maria-rapaz, com gestos e uma maneira de andar mais masculina, que eu queria recriar. E depois há o cabelo dela e os olhos. Era preciso dar ao espectador uma imagem que reconhecessem, caso contrário não seria credível.
O que fez para chegar a essa imagem?
Tentei ver várias entrevistas dela, mas infelizmente não há muitos arquivos. Eu tinha de a compreender, para a poder interpretar. O lado emocional era para mim mais importante do que se me parecia ou não com ela. Fiz um trabalho corporal, mas o mais importante é que na sua voz se percebesse o trauma por que passou.
Sente que tem alguma responsabilidade face a jovens atrizes, dizendo-lhes que podem dizer "não" a situações como estas?
Não tenho a pretensão de pensar que tenho essa responsabilidade. Nem quero ter essa pressão sobre mim. A Maria é que deve servir de modelo para as jovens atrizes que têm de dizer não, e que devem ser honestas e leais para si próprias. Ela é que foi a primeira a falar sobre isto. E de o fazer com orgulho, sem ter medo. Foi uma atitude brava, não sei onde conseguiu arranjar forças para o fazer. E estava sozinha, no meio de pessoas que estavam confortáveis com o que se passou, porque lhes interessava. Hoje ainda se passam coisas e há realizadores que não trabalharam de forma honesta com as suas atrizes e que ainda têm os seus filmes selecionados para grandes festivais. Talvez as pessoas que os selecionam estejam de acordo com esses comportamentos. Mas o tema é complexo e é por isso que muita gente não o quer discutir.
Bernardo Bertolucci já não está connosco, mas se algum realizador envolto numa polémica semelhante a convidasse para um filme, aceitava?
Não sei bem o que responder. A vida privada das pessoas com que trabalho não me interessa, não me diz respeito. Mas quando se trata de situações do foro judicial, com acusações, prefiro não aceitar. Não quero trabalhar com pessoas que tenham comportamentos desviantes. Mas é uma questão complicada, precisava de ser confrontada com isso para saber como responder.
Pensa que é possível separar a arte do artista?
Não sei, a questão é mesmo essa. Ainda só tenho 25 anos, mas já navego nesta indústria desde criança. E vejo progressos nesta indústria. Ainda estou a perguntar a mim mesma o que faria se me acontecesse algo assim e não tenho as respostas.
Tentando abstrair-se da cena que recriou, o que pensa de “O Último Tango em Paris”?
O filme do Bertolucci é considerado uma obra-prima. Mas eu não acho, e não é por causa daquela cena. Para mim, arte não é compatível com sofrimento, com dor, com violência. Não acredito num realizador que manipule uma atriz daquela forma, por causa de uma personagem. Não é humano. Há tanta coisa que se consegue de um ator se trabalharmos todos em conjunto. É nessas alturas que se dá o melhor, que se consegue ir mais longe. Um ator não pode ser uma marioneta nas mãos de um realizador.
O que viveu de mais intenso durante umas filmagens?
Um ator quer sempre ir mais longe. Eu trabalho nesse sentido. Quero sempre levar mais longe os meus limites, mas fazê-lo de uma forma segura. E se quiser ir a algo muito profundo é porque eu o decidi, não porque alguém o decidiu por mim. Quero ter esse poder sobre as minhas emoções.