Uma casa no norte de Portugal. Uma mulher que sempre ali viveu com a sua empregada. Um neto que realiza uma lindíssima e terna evocação desse tempo, de vida e de morte. “Sob a Chama da Candeia”, de André Gil Mata, já está nos cinemas, e espera ansiosamente o seu olhar.
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Quem são realmente estas personagens que vemos no ecrã?
As personagens são inspiradas nas pessoas que viveram naquela casa. A minha avó, que nasceu ali, e Beatriz, que era orfã, e foi viver e trabalhar para lá quando teria 12 anos. As outras personagens também são inspiradas nas pessoas que viveram aquela casa.
Até que ponto a ficção ultrapassou o real?
O real é sempre difícil para mim definir. O filme é construído por memórias que vivi neste lugar e memórias que me foram contadas pela minha avó, pela Beatriz, pelo meu pai, pelos meus tios. Mas as memórias são sempre reconstruções de sentimentos e recriações que fazemos do que vivemos. A memória é um lugar de ficção, não compete com o real, pois o real só pode estar no presente, e o presente nunca o conseguimos agarrar. São duas dimensões que só existem em dependência total uma da outra.
A casa onde filmou é onde as personagens reais viveram realmente?
Sim, era a casa onde a minha avó nasceu e viveu toda a vida. Primeiro com a sua mãe, depois com o meu avô e com a Beatriz. A casa onde o meu pai e os meus tios nasceram e cresceram, e onde eu passei muito tempo na minha infância e juventude. Era um lugar muito especial para mim quando era miúdo e era um lugar tanto de medo e mistério, mas também onde me era dado um amor muito grande através destas duas mulheres.
Como é que se consegue ultrapassar uma dimensão pessoal e manter a distância suficiente para se poder trabalhar?
Creio que se consegue através da arte, seja o cinema ou outra forma de expressão. Creio que a literatura nos mostrou sempre muito isso. Acho difícil partir de uma dimensão que não seja pessoal. Não consigo partir de nada que não esteja dentro de mim. Parte sempre da minha relação com algo, ou com alguém, e essa relação é sempre pessoal. A distância é sempre ténue, por vezes, uma invade a outra, mas também é essa a beleza do trabalho. Não consigo relacionar-me com o trabalho se não o sentir, e o que sinto é sempre pessoal.
A Eva Ras já tinha trabalhado consigo…
Nunca tinha trabalhado com a Eva. Fiz um filme em que o nome dela surge no título, e onde usei dois excertos de um filme em que ela entrou. “Como me apaixonei por Eva Ras” é construído numa cabine de projeção de um cinema em Sarajevo, e interpretado pela própria mulher que viveu ali, Sena Mujanovic. A sala já não projetava quando filmamos. Nesses anos tentei ver todos os filmes jugoslavos que encontrei e fiquei fascinado por aquela atriz, pelo seu trabalho, e decidi que o filme tivesse esse nome.
Porque a escolheu para compor uma personagem tão pessoal?
Só conheci a Eva numa sessão desse filme em Belgrado. E senti um lugar de calma, de ternura, de sensibilidade que me recordou muito a minha avó. Foi um pouco por esse encontro que recuperei a vontade de fazer o “Sob a Chama da Candeia”. Quando soube que iria poder fazê-lo escrevi-lhe a perguntar se aceitaria interpretar a minha avó. Ela aceitou e foi de uma generosidade incrível. Acho que só ela poderia interpretar a minha avó.
Como é que “alimentou” a relação pessoal entre a Eva Ras e a Márcia Breia?
Estava toda uma equipa naquela casa. Nos meses de preparação uma equipa de produção, de arte, de fotografia a recuperar a casa, que na altura já era uma espécie de ruína, um lugar totalmente vazio, onde só restavam as paredes. Na rodagem a equipa aumentou com a presença de toda a equipa e dos atores e atrizes. Essas relações que se foram construindo foram também através daquela casa. E tanto a Márcia como a Eva sentiram muito a força daquele lugar. Os espaços ajudam muito a criar essas relações. E foi sempre muito através de falarmos sobre sentimentos, sobre lugares das nossas memórias, das nossas vidas.
Como é que se conjuga o trabalho dos atores com um trabalho tão rigoroso da câmara?
Eu escrevo muito sobre a luz, sobre os movimentos de câmara, sobre o som, sobre os espaços de cada plano. Isso facilita a comunicação com toda a equipa. Depois eu e o Frederico Lobo, o diretor de fotografia, passamos muito tempo naquele espaço e antes da rodagem tínhamos todos esse trabalho preparado. Creio que isso dá um espaço enorme de poder trabalhar com os atores e eles poderem habitar dentro do quadro.
É a sua forma habitual de trabalhar?
Não é nada que seja uma fórmula mas é apenas a forma em sinto mais tranquilidade a trabalhar. Se prepararmos bem as coisas, depois temos um lugar para o improviso que não é um improviso forçado mas natural que acrescenta em vez de ir contra.
O cinema, ao contrário do que muitos diziam, não morreu. O seu cinema é uma busca de um cinema novo, de fazer e de ver um outro cinema?
Não sei será um outro cinema, ou um novo cinema. Ele é sempre novo na medida que cada filme é uma experiência nova e vai sempre resultar num novo filme. E o cinema como o mundo e as vidas está sempre em transformação. Por isso é sempre outro cinema, porque ao fazermos estamos sempre a descobri-lo, a conhecê-lo melhor.