Filmes de Dario Argento, Claire Denis e Ulrich Seidl mostram que cinema está vivo.
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Depois da abertura atribulada, com interrupção da projeção de "Peter von Kant" durante meia hora e reinício num momento diferente do filme, nada usual na estrita organização germânica, a Berlinale teve um segundo dia recheado de bom cinema, a mostrar que sim, valeu a pena organizar o certame, e que o cinema continua vivo, na sua diversidade. E que maior diversidade poderíamos ter do que no regresso ao giallo puro e duro de Dario Argento, na observação de uma derrocada amorosa por Claire Denis e no olhar sempre cáustico do austríaco Ulrich Seidl sobre as margens da sociedade, sobretudo os mais velhos e abandonados?
"Dark glasses" era um projeto antigo de Dario Argento que nunca tinha sido concretizado. A sua filha, Asia Argento, lembrou-se desse guião, ainda escrito à máquina e sem nenhuma cópia em computador e, depois dos dois o lerem e de finalmente encontrarem financiamento, o filme ganha vida.
E em boa hora assim aconteceu, com o mestre do horror à italiana a manter-se, felizmente, fiel ao cinema gore. Esta é uma obra original, longe das cópias pretensiosas que infelizmente têm enganado alguns grandes festivais de cinema mas que, ao menos, tiveram o condão de fazer os produtores perceber que o género continua a ser um dos de maior agrado do público.
E assim será certamente quando "Dark glasses" se estrear em Portugal, garantida que está a sua distribuição. Com Asia Argento num papel secundário, é Ilenia Pastorelli - que contou ao JN estar a morar no Bairro Alto, em Lisboa, por ter seguido "uma história de amor" - a interpretar a personagem central, Diana, uma escort girl de luxo perseguida por um homem que anda a assassinar prostitutas e que, numa das suas fugas ao criminoso, tem um acidente de automóvel que a deixa cega.
O sangue não falta nesta obra de um mestre do género que não perdeu o jeito, e em que a música tem um papel preponderante, como em qualquer bom filme de suspense. Desde o início que nos sentimos na pele de Diana, acompanhada por um jovem chinês que sobreviveu ao choque com o seu automóvel e com uma cadela de apoio a invisuais que irá ter um papel crucial na ação.
Bem diferente é "Avec amour et acharnement", o regresso ao bom cinema de Claire Denis, ultimamente um pouco em baixo de forma. Voltando a trabalhar a parte musical do filme com os Tindersticks, oferece-nos um manual sobre o fim de uma relação amorosa. Jean e Sara são um casal apaixonado e feliz, ambos com relações anteriores. Quando Jean começa a trabalhar num projeto com François, antigo amante de Sara, esta não resiste a uma reaproximação.
O que é extraordinário no filme de Claire Denis é pegar no que é uma trama bastante usual no cinema e dar-nos a ver algo de uma enorme intensidade, a que não são alheios os atores principais, Vincent Lindon e Juliette Binoche, que dão corpo, alma, paixão e raiva às personagens. Um daqueles trabalhos em que quem já amou assim vai seguramente encontrar algo com que se identificar, por mais doloroso que possa ser.
Já Ulrich Seidl não surpreende com a sua última realização, "Rimini", o que é bom, visto manter intacto o estilo e o conjunto de temas favorito, que o tornou um dos autores mais idiossincráticos e criativos do cinema contemporâneo, embora possa não ser para todos os gostos.
A personagem central, Richie Bravo, é um cantor romântico já decadente que, após a morte da mãe, regressa a Itália e passa a temporada de inverno na estância balnear de Rimini, cantando para os idosos que lá vão passar uma temporada e satisfazendo sexualmente velhotas a troco de algum dinheiro para os vícios da bebida e do jogo. A chegada de uma filha que não vê há 18 anos e lhe exige o dinheiro que não teve nesse período vai complicar ainda mais a vida de Richie Bravo, que no entanto não é homem para se deixar vencer assim tão facilmente.
Com o estilo cru, sequências de sexo quase explícito e que podem ser consideradas incómodas por muitos e um olhar cáustico sobre os esquecidos da sociedade, sem esquecer uma visão política sobre a questão dos refugiados, "Rimini", a cidade natal de Federico Fellini, é um filme que se espera ver entre nós e que possa de novo alertar os mais iniciados na cinefilia para este autor ainda com muito para descobrir.