"No Verão passado”, já nos cinemas portugueses, foi o pretexto para uma conversa com a cineasta francesa Catherine Breillat.
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Anne, uma advogada de sucesso, tem uma existência feliz com o marido e as filhas de ambos. Theo, de 17 anos, filho de um casamento anterior de Pierre, vai morar com eles. O equilíbrio quebra-se quando Anne se apaixona por ele, ponde em risco a carreira e a vida familiar… “No Verão Passado”, o último filme de Catherine Breillat, é a versão francesa do dinamarquês “Rainha de Copas”, e tem como protagonistas Léa Drucker e o jovem Samuel Kircher. A realizadora francesa, conhecida pela forma explícita como tem mostrado a sexualidade, já filmou em Portugal e, em Cannes onde o filme estreou, esteve à conversa com o JN.
Quando é que viu o filme dinamarquês que esteve na base do seu?
Foi o produtor, o Said Ben Said, que comprou os direitos e disse-me que talvez eu o pudesse fazer uma versão francesa. Mandou-me um link, eu não tinha visto o filme. Moro numa ilha, não posso ir ao cinema. Tenho graves problemas de locomoção e mesmo que fosse ao cinema depois não havia barco para regressar a casa. Só em julho e agosto.
O que pensou do que viu?
Esperei que não tivessem pensado em mim por causa da crueza das cenas de sexo do filme dinamarquês, porque isso já eu fiz. Não quero refazer o que já fiz. Mas achei que todo o dispositivo da mentira era siderante. Nunca tinha visto nada assim. O argumentista do original é genial e deu.me vontade de me confrontar com a história dele.
Quais foram as principais alterações que fez?
O meu adolescente não é nada igual. E quis que fosse ele a apaixonar-se por ela. Não tinha vontade de mostrar uma mulher predadora, isso não sei fazer. Isto muda já bastante. Ao ver o filme terminado com a minha montadora senti que tinha mudado muita coisa, mesmo que as palavras sejam praticamente as mesmas. Pode ser um caso de estudo, como é que o mesmo argumento pode ser um filme com uma intenção completamente diferente. Mostra que o realizador tem um olhar que transfigura sempre tudo.
Acabam assim por ser dois filmes diferentes…
O que é bom, porque um não apaga o outro. São duas entidades completamente diferentes. Ambos fortes, merecem ser os dois vistos. Dou um outro exemplo. Não quis que as irmãs fossem gémeas. Eu tenho uma irmã, somos muito próximas. Queria duas irmãs muito próximas, mas muito diferentes. E que uma fosse muito jovem, que tivesse a sua prieira experiência amorosa. Esse já é o meu género, a minha marca pessoal.
É o desejo feminino, a sua marca?
Nunca o chamo de desejo feminino. É a atração entre dois seres. Que leva ao desejo, embora não o compreendam de início. Há qualquer coisa de inocente. São adolescentes, têm a mesma idade, compreendem-se melhor do que aos adultos. Não sou a cineasta do desejo feminino. Primeiro vem a atração, só depois o desejo. Acaba por ser menos escandaloso que o filme dinamarquês, mas mais subversivo, porque parece muito natural.
Aquela família é da alta burguesia, ele homem de negócios, ela advogada. Há também uma crítica social no seu filme?
Não, a sociedade não me interessa nada. Temos todos os mesmos sentimentos. Só que numa família burguesa tem-se tempo de os viver, porque não se tem de lutar pela vida. E a sua cultura permite-lhes falar mais em profundidade das suas experiências. O que me interessa são os sentimentos e as emoções, as relações entre as pessoas. Se quisesse fazer uma crítica social escolheria outro tema. Mas os sentimentos e as emoções são eternos. Encontramo-los nos clássicos gregos e romanos, em Corneille, Racine e Shakespeare.
A personagem do marido enganado, apesar de tudo, tem também uma grande força…
Podia ser uma personagem ridícula, mas quis evitar o vaudeville. Aquele homem é tão humano. É um papel muito difícil, porque é um marido enganado. Mas quis dar-lhe uma grande humanidade. Todas as personagens são muito humanas. Não é uma mulher mais velha que gosta de um adolescente, são dois seres que se amam. E o marido também tem uma profunda humanidade. É isso que é preciso falar, pessoas verdadeiras. Todos os seres humanos têm direito a viver a sua vida e as suas emoções, sem terem de passar pelos códigos puritanos que querem colocar nas relações humanas.
Numa história destas, a mulher é sempre vista como a culpada.
Precisamente. E eu quis mostrar que ela não é culpada. Podemos dizer que cometeu um erro, porque não devia ter cedido, mas toda a gente neste mundo terrível comete erros. Somos todos humanos, não? Temos direito a cometer um erro, se é irresistível.
A cena do prazer é transmitida apenas pelo rosto de Léa Drucker. Parece Caravaggio.
Não parece, é. A pintura é a Maria Madalena em Êxtase. Era uma cena muito difícil de filmar. Pensei muito na forma de o fazer. E uma noite descobri. Quando tenho problemas é quase sempre de noite que encontro a solução. E lembrei-me de uma exposição de Caravaggio que tinha visto. Os pintores fazem estudos e estudos. Numa rodagem não temos tempo de o fazer. Decidi copiar aquele Caravaggio. À época, foi uma revolução. E eu tinha a atriz com o rosto do quadro. A sensação que eu queria transmitir era a do êxtase.
São as diferenças entre a pintura e o cinema…
Vou explicar-lhe porque é que um realizador não pode inventar uma posição assim. Parece simples, mas é muito complicado, quando temos um casal na cama. No Caravaggio, a posição do rosto é muito estranha, mas é isso que torna o quadro tão sublime. Mas deve ter sido muito desconfortável. No meu filme há outras cenas em que os corpos parecem ter posições erradas, porque eu adoro a pintura. Gosto muito de ver as minhas personagens de frente, e sem cortes. Por isso inspiro-me muito na pintura.
Como é que trabalhou as cenas amorosas entre Léa e um adolescente? Utilizou um coordenador especial para essas cenas?
Sou radicalmente contra. Sou eu a realizadora. Essa profissão nem devia existir, só pervertem as cenas. É o resultado do puritanismo. É preciso ter confiança na exaltação da beleza. Eu sou muito precisa. Gosto de fazer tudo num só plano, é preciso coreografar tudo. Trabalho com a minha assistente, eu ocupo o lugar de um dos atores. Repetimos tudo com o diretor de fotografia e só depois mandamos vir os atores. Primeiro aprendem a coreografia, depois interpretam a cena. Se for sublime à primeira, não se repete mais.
Esses coordenadores de cenas de amor começam a estar em voga…
Mas não há diplomas de moralidade. Não existem mestrados em moralidade. São eles que se auto proclamam especialistas. Tem tudo a ver com a moralidade. É tudo uma hipocrisia. Querem matar a