Correspondência inédita de Charles Bukowski agora editada pela Alfaguara mostra-nos a compulsão do autor pelo ato criativo.
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Podemos distanciar-nos do tom por vezes ególatra ou da propensão monotemática de muitos seus livros, mas há algo em Charles Bukowski que está acima de qualquer crítica: o seu absoluto compromisso com a escrita.
Essa evidência sai ainda mais reforçada com a leitura de “Sobre a escrita”, um volume de correspondência inédita que o poeta e romancista trocou durante quase meio século com um número alargado de pessoas, desde editores de obscuras revistas de poesia a escritores como Henry Miller, John Fante ou Lawrence Ferlinghetti.
Nas largas dezenas de cartas reunidas neste livro, vemos como, independentemente do grau de aceitação da sua escrita, 'Buk' nunca duvidou, por um instante que fosse, que a escrita, mais do que um hobby ou uma paixão, era o seu destino, a única possibilidade de elevar-se das limitações, inconsistências ou perplexidades da vida e até escapar à consciência da mortalidade. Ver as palavras a ganhar forma no papel, a tornarem-se matéria inflamável capaz de causar um efeito profundo a quem com elas contactasse, era o que de mais belo podia haver, na lógica bukowskiana.
No seu melhor, e há abundantes exemplos disso mesmo em “Sobre a escrita”, Bukowski era um escritor em carne viva, um desses raros espécimes capazes de convocar para os seus livros (os de poesia, sobretudo) a totalidade da experiência humana. A miséria que o perseguiu durante praticamente toda a vida, com excepção dos derradeiros anos, em que pôde finalmente viver da escrita, deu-lhe a resistência e a lucidez necessárias para melhor observar os outros, mas também um desapego que está muito distante de ser a norma no meio literário.
O que espanta neste livro é a perseverança absoluta do autor de “Pão com fiambre” no ato da escrita, mesmo quando via os seus poemas serem recusados por revistas de segunda categoria. A “viagem mágica” que a escrita lhe proporcionava, apenas vagamente equiparável ao gosto pelo álcool, música clássica e pela leitura dos mestres Céline, Fante ou Dostoiévski, situava-se para lá de qualquer tentativa racional de explicação simplista.