Filmes da Dinamarca e de França exibidos no arranque do festival traçam fortes retratos de mulheres.
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Contra tudo o que tem apregoado nos últimos tempos, o Festival de Cannes apresenta este ano apenas quatro realizadoras entre os 22 filmes a concurso. São elas a indiana Payal Kapadia, a britânica Andrea Arnold e as francesas Agathe Riedinger e Coralie Fargeat.
Trata-se afinal de mera estatística, porque o que interessa a todos os que põe os pés em Cannes para ver bom cinema é precisamente isso que está em causa: bom cinema. A qualidade não pode ter quotas, o que importa é oferecer igualdade de oportunidades à entrada para o mundo do cinema.
Sendo uma questão como qualquer outra discutível e transversal a todas as atividades humanas, culturais ou não. Para alimentar ainda mais a questão, é sempre possível ter fantásticos retratos de mulheres em filmes assinados por homens. E é precisamente o que acontece com uma das primeiras entradas da competição, “A Rapariga da Agulha”, do dinamarquês Magnus von Horn.
O título tem a ver com a atividade profissional da protagonista, costureira numa fábrica dinamarquesa que, nos finais da Primeira Grande Guerra, produzia uniformes para os militares na frente de batalha. É o que se passa com o marido da protagonista, desaparecido em combate, dado como morto, o que a leva a envolver-se com o patrão, de quem engravida. No entanto, a mãe deste, matriarca de um império, não deixa o filho casar-se com uma modesta costureira. Para complicar a história, e terminada a guerra, o marido acaba por chegar da frente, mas desfigurado…
O filme inspira-se em factos verídicos e a acumulação dramática não se fica por aqui, muito pelo contrário. A agulha do título terá outra função, muito menos prosaica. Mas, ao contrário de outros dramas em que a sucessão de eventos perde a sua lógica pelo caminho, “A Rapariga da Agulha” tem um argumento sólido, oferece um retrato social da época e o seu austero preto e branco joga com a dimensão psicológica do tema.
Acima de tudo, é cinema, um pouco na tradição nórdica. E, apesar de denso e duro na sua evolução narrativa. Termina com um toque de esperança e humanismo. Espera-se que ofilme chegeu até nós, até porque tem como protagonista uma portentosa Vic Carmen Sonne, que já víramos na série “O Reino” e no filme “Terra de Deus”. Uma primeira grande candidata ao prémio de interpretação feminina.
No oposto em termos de qualidade está afinal uma das entradas femininas da competição, “Diamant Brut”, filme de estreia da francesa Agathe Riedinger. por isso candidato à Camera d’Or, entregue ao que o júri entenderá ser o melhor dos primeiros filmes, todas as seções do festival incluídas. Não parece vir a ser o caso deste filme, um retrato de mulher, mas num contexto completamente distinto do filem dinamarquês.
Estamos na atualidade, no sul de França, e acompanhamos Liane, uma jovem de 19 anos cujo sonho é ser alguém, candidatando-se a um lugar no próximo reality show e tudo fazendo para, no seu perfil das redes sociais, ter o maior número possível de seguidores, tornando-se uma influencer. Imagem do mundo em que vivemos, o filme de Agathe Reidinger não tem no entanto qualquer sentido crítico e a sua matéria dramática seria mais do que suficiente para uma curta-metragem.
A realizadora, que no geral se limita a filmar o seu guião, sem qualquer olhar cinematográfica, explora a imagem da sua jovem atriz, incapaz de criar empatia com a sua personagem, e resolve tornar o todo um pouco mais pomposo com uma insuportável e desajustada música de violoncelo e com frases que por vezes ocupam a integralidade do ecrã. Um daqueles filmes que dão por vezes uma má imagem do que é o cinema francês.
Entretanto, tiveram início as duas seções paralelas mais importantes e antigas do festival, a Quinzena de Cineastas e a Semana da Crítica. Esta última, onde Isadora Neves Marquesirá apresentar a curta-metragem “As Minhas Sensações São Tudo o que Tenho para Oferecer”, as honras de abertura foram para a estreia na longa-metragem do francês Jonathan Millet.
Coprodução entre a França e a Alemanha a história tem no entanto a Síria como ponto de partida. Hamid, a personagem central, faz parte de um grupo secreto que persegue fugitivos conotados com o regime. É essa missão que o leva a França, embora com uma perspetiva mais pessoal: quem ele persegue foi o homem que o turturou e que ele vai ter de confrontar.
É na lendária Quinzena dos Cineastas, fundada na sequência dos acontecimentos de Maio de 68, que interromperam a edição desse ano de Cannes, que se concentra a maior parte da delegação portuguesa. Além da longa-metragem documental “A Savana e a Montanha”, de Pualo Carneiro, a Quinzena vai ainda mostrar as curtas “O Jardim em Movimento”, de Inês Lima e “Quando a Terra Foge”, de Frederico Lobo.
Antes da abertura oficial, a Quinzena entregou a Carrosse d’Or de carreira do ano à britânica Andrea Arnold – que tem “Bird” em competição pela Palma de Ouro – exibindo um dos seus filmes anteriores, a raridade “Red Road”. Para abria oficialmente a Quinzena foi então escolhido a comédia melancólica francesa “Ma Vie Ma Gueule”, de Sophie Fillières. A realizadora faleceu em julho do ano passado, aos 58 anos, antes de terminar a montagem, que seria terminada com a supervisão dos filhos, Agathe e Adam Bonitzer.
A atriz Agnés Jaoui interpreta o papel de Barbie – não a do filme de Greta Gerwaig do ano passado – uma mulher de 55 anos cuja crise existencial acompanhamos em três atos. Uma forma comovente de dar início à Quinzena.