Quatro décadas de escrita poética de Adília Lopes reunidas no novo volume de “Dobra”.
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A cada nova edição aumentada da recolha da poesia de Adília Lopes, o que sucede regularmente desde 2000, cresce também a convicção do notável sentido de unidade de uma obra que, paradoxalmente, nunca abdicou do seu caráter multiforme. Ou seja: o registo adiliniano é de tal forma característico e singular que se sobrepõe às diferentes fases (ou tonalidades) pelas quais a sua poesia tem passado nas últimas quatro décadas.
É, citando o seu título de estreia, “Um jogo bastante perigoso”, esse o de devolver à vida, através da escrita, o que pertence a essa mesma vida. O choque inicial pelo confronto com uma escrita que se socorre da memória pessoal filtrando-a através de um discurso poético aparentemente simples e direto, deu hoje lugar não só a uma integração no cânone literário, mas também a uma relevância académica e crítica que seriam impensáveis nos primeiros anos.
Todavia, lendo os seus poemas mais recentes, incluídos em volumes como “Pardais” (2022) ou “Choupos” (2023), facilmente observamos que continua a haver por parte da poetisa a mesma vontade firme de respirar o ar do quotidiano, como se ele fosse a verdadeira combustão para o ato solitário da escrita.
Assistimos também de forma continuada ao que pode ser considerado uma espécie de pacto autobiográfico, em que “o sujeito lírico se confunde com o empírico”, como defende a académica Lúcia Liberato Evangelista, o que faz com que no mesmo poema tanto possam caber os mais variados episódios do dia a dia e lembranças da infância, como inúmeras referências literárias e culturais, mesmo as mais inesperadas.
“Arquimedes descobriu a lei da gravidade quando estava a tomar banho na banheira, não foi quando estava a dedilhar no telemóvel”, como escreveu numa nota diarística de 2015, sugestivamente intitulada “Eureka”.
Através da escrita pulsante de Adília, o poema reclama o seu lugar no âmago das coisas, materiais ou não, e faz-nos crer que o seu papel deve ser preferencialmente sempre o da transgressão e do questionamento permanentes.