Difícil levantar poeira com tanta lama, mas Fred Again e Bad Religion bem tentaram
Duas propostas de universos distintos, quase antagónicos, marcaram a noite de quinta-feira no Primavera Sound. Hardcore melódico do lado dos Bad Religion, eletrónica refinada do lado de Fred Again
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Atualmente com pinta de arquitetos reformados, os Bad Religion são uma das bandas mais rentáveis da história do punk hardcore, com milhões de álbuns vendidos entre a estreia, em 1982, com "How could hell be any worse?", e a última edição, de 2019, "Age of unreason". Um paradoxo que nem todos perdoam. Uma mácula na reputação anti-capitalista do género. Mas que fazem de tão profano os Bad Religion?
Trazem, mas não tanto como outros grupos que neles viram um caminho, como Green Day ou Offspring, um formato de canção mais melódica, juntando por vezes três vozes, e uma definição mais clara de cada instrumento. Não é só uma massa caótica e acelerada, como a de muitas bandas da primeira vaga hardcore dos EUA, no início dos anos 1980, que de facto não alargaram as vendas para lá do núcleo de militância. Mas também não são "irreverentes" escolhidos num casting, nem "posers" amestrados.
Temas como "Come join us", "Fuck you" ou "End of history", que só não levantaram poeira junto ao Palco Super Bock porque o piso estava demasiado ensopado para isso, contêm aquela epilepsia e velocidade que caracterizam o hardcore, ostentam um manguito nas letras subversivas e niilistas, são breves e contundentes na sua abordagem. Nunca terão a importância de uns Dead Kennedys, mas são musicalmente superiores a quase todas as bandas desse planeta.
Clube noturno alagado
Um pouco antes, o antigo palco principal, atual Vodafone, produziu um clube noturno cheio de goteiras e de lama. Ao comando dos pratos, Fred Again, nome que ganhou hype com o belíssimo álbum criado em parceria com Brian Eno, "Secret life", e com a ribombástica sessão no Boiler Room de Londres, em julho de 2022.
Fred, que se fartava de rir, abrigadinho da chuva, aviou as faixas dos três tomos de "Actual life", espécie de diário de bordo iniciado pelo britânico durante a pandemia. É música que evolui de toadas ambientais, onde cabe rap e "spoken word", para súbitos crescendos que obrigam o corpo a mexer-se. Curiosamente, sempre que os bpm (batidas por minuto) aceleravam, também a chuva aumentava de intensidade. Uma sintonia que encharcava o espaço, mas que não pareceu afetar o público, vibrante e alienado como se estivesse num clube com telhado.