"No País do Silêncio" e "A Menina Invisivel", os dois primeiros romances de Rita Cruz, transportam-nos para dois períodos distintos da História de Portugal - final da monarquia e Estado Novo -, mas convergem na atenção ao detalhe e na importância da memória como salvaguarda da identidade.
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Excerto de "A Menina Invisível"
"Avistei o senhor Pedrinho antes de ser nítido, quando ainda era figura distorcida pelo calor atordoado de agosto, ardume no ar, nas pedras, no chão. O senhor Pedrinho caminhava com o vagar da distração. O incêndio do dia não lhe perturbava a mente, que vagueava pelas urzes e pela terra comida de verão, que misturava cores e contornos para os desenhar depois, da mesma, ou de outra forma. O senhor Pedrinho, o artista, nem sempre desenhava tal e qual o que via. Trazia com ele a pasta. Identifiquei-a, apesar de estar desfocada como ele. Vinha a balançar com o andar, mole, como se dentro dela não houvesse preciosidade. Era a pasta que trazia a carta.
Gritei pela avó Ofélia mal soube que era ele. Ela espreitou, vinda de dentro do casebre, e sorriu de contente. Olhos brilhantes, suspiro profundo e pouco mais. Que a alegria na avó, como tudo o resto, também não fazia uso de palavras. Ia ser um bom dia. Sempre o era, quando chegava uma carta. Sempre o era, quando chegava o senhor Pedrinho.
Eu tinha acabado de vir do monte com as duas ovelhas e a cabrita Florzinha, que de ita há muito tempo que já pouco tinha, cabra feita e mãe de uma cria vendida há mais de um ano. No caminho de regresso, Florzinha assustara-se com alguma coisa e largara a fugir pelo meio da vegetação densa e áspera que se metia nos intervalos das pedras. Eu arrancara atrás dela e, pelo caminho, rasgara o pé. Doía-me bastante, e ainda só tinha começado a inchar, mas a preocupação, no momento em que a figura de pasta na mão se aproximava, não era nem a dor, nem o receio que o vinagre não fosse suficiente para retirar gana ao que se tinha metido pelas paredes abertas na pele. Era o cheiro ácido do curativo. Se soubesse da visita, teria deitado o vinagre mais tarde. Certifiquei-me de que a avó Ofélia não me via e verti grande parte da água do cântaro para esfregar o cheiro do pé.
O senhor Pedrinho faz quilómetros para ali chegar, mas é a casa dele, com direção certa, com nome de lugar e de palacete, que chega a correspondência enviada pelo avô. O avô que tem voz de rapazinho, porque eu não o conheço senão pela voz que o senhor Pedrinho dá às palavras que ele escreve.
O avô partiu para o Brasil quando a avó era jovem, há tantos anos que desde então houve tempo a que os filhos, que deixou meninos, crescessem e morressem: o meu tio enterrado debaixo do solo de uma mina, e a minha mãe a parir-me.
«Porque é que o avô só escreve uma vez por mês?», perguntava eu à avó.
«O Brasil é longe, Alice, demora-se a chegar. As cartas demoram muito tempo a ir e a vir.»
«Mas tantos dias? O mar é assim tão grande?», insistia eu.
«Não sei, Alicinha, que eu nunca o vi. Pergunta ao sô Pedrinho quando ele cá vier da próxima vez.»
«Se calhar o barco é lento. Não se vê o Brasil do sítio donde sai o barco?»
«Também não sei, Alicinha, se calhar vê-se, mas eu nunca lá fui.»
«Se calhar dá para ir a pé, pelas margens. Será mais rápido assim?»
«Já te disse que perguntes ao sô Pedrinho quando ele cá vier outra vez.»
O meu avô, que eu não conheço, tem cara bonita e roupa aprumada e no ar à volta dele vivem gotas de ribeira. O meu avô é o senhor Pedrinho. Nos dias em que vem, falar da vida no Brasil, a rotina é cortada a meio e o que sobra dela é mais doce que os rebuçados de mel da feira. A avó ganha uma vida que se espalha dos gestos à língua. Se a carta vem com remessa maior, chega mesmo a rir e a mostrar o espaço vazio entre os dois caninos.
Quando o senhor Pedrinho chegou naquele dia, a avó saiu do casebre com pão e um naco de queijo curado. Pousou os dois numa manta no chão, sacudiu o avental, penteou o cabelo e limpou a pedra de granito que emerge da terra, à beira da porta.
«Venha, sô Pedrinho, sente-se aqui! Venha, venha!»
Indicou-lhe o lugar para se sentar, com o entusiasmo atabalhoado a magoar de golpes a pedra. O senhor Pedrinho ouviu-a e acelerou o passo, finalmente ciente do propósito da caminhada.
«Boas, dona Ofélia!», disse, com voz de gente crescida. «Bom dia, menina Alice.»
Dito por ele, com aquela voz de ribeira, o meu nome vestia bem e de lavado. Sentada no chão, as duas pedras à beira do casebre reservadas para a avó e para ele, cobri os pés sujos com a saia de burel e farejei, desconsolada, a acidez do vinagre.
Com apuro, Pedrinho abriu a pasta e retirou o envelope selado a lacre e a faca lisa, dourada e brilhante, sem outra utilidade que não a de penetrar naquele vermelho pastoso. De dentro do sobrescrito, retirou um outro envelope, mais pequeno, que entregou à mão enrugada da avó, que o agarrou e o abriu sem faca, nem cerimónia, nem delicadeza. Dentro dele, a remessa. A avó Ofélia esticou os lábios e o sorriso limpou as rugas dos lábios, entregando-as ao resto do rosto.
Enquanto a avó guardou o envelope no bolso do avental preto, o senhor Pedrinho esticou as duas folhas de papel e começou a ler. Fá-lo sempre devagar. Um dia, contar-me-á que tardava nas palavras não porque o avô quisesse que assim fossem lidas, esticadas nos segundos com o vagar de uma carícia, mas porque lhe custava descodificá-las. E que muitas vezes tinha de adivinhar significados em gatafunhos indecifráveis.
Nesse dia, o último dia em que o senhor Pedrinho leu uma carta do avô, falou rápido e direto, contudo, porque aquelas palavras, as primeiras da missiva, deviam ter sido escritas com todo o preceito que a notícia exigia.
Minha queria esposa, depois de vinte anos fora, tenho a dizer-te que juntei aqui o suficiente para regressar.
O senhor Pedrinho leu e parou logo a seguir, para sorrir muito. Gostava de ser portador de boas novas.
«Que beleza, dona Ofélia, que maravilhosa notícia!», disse à avó.
Colocou na frase o mesmo tom que mais tarde hei de ouvir a precetora Mrs. Griffin usar com ele.
«Ai! Sô Pedrinho, ai! Pois é, ai! Pois é!», respondeu a avó, e tinha o rosto tão deformado de alegria que não era só o espaço entre os caninos que se via, mas dos molares que também já não tinha.
O senhor Pedrinho continuou a ler a carta, com mais rapidez que o normal, menos delicado com os obstáculos que ia encontrando. Também ele, nesse dia, mais interessado no conteúdo que o habitual. Ouvimos o avô relatar que tinham sido anos árduos, mas que a alegria de voltar era uma coisa que mal se conseguia explicar, que tinha dinheiro suficiente para comprar uma casa decente na aldeia, com terreno. Dinheiro para que a esposa nunca mais na vida tivesse de trabalhar e andasse bem vestida, que a vida ia ser diferente quando ele voltasse.
O senhor menino voltou a levantar os olhos do papel e a dirigi-los à avó, que nem se importava em limpar as lágrimas que reluziam ao sol da manhã, encalhadas numa ruga do rosto tisnado. E repetiu, como se a ele se lhe tivessem encalhado as palavras, como a ela se lhe tinham encalhado as lágrimas.
«Mas que boa notícia, dona Ofélia. O marido vai regressar!"
Excerto de "No País do Silêncio"
"'É agora ou nunca!"
O pai outra vez.
Já não era verão, mas Inverno, e já não era 1948, mas 1949. Esse seria o ano. A candidatura tinha avançado com a companhia das certezas inabaláveis. Em fevereiro, o pai e os que o rodeavam levantaram o dedo e juraram a aproximação de ventos de mudança. Celebraram em antecipação e falaram alto. O perfil que entumecesse, que nenhum deles se importava. A política não era coisa de cabeça então, mas de coração, e as dúvidas não encontravam espaço nesse órgão.
"Votai a vossa liberdade por Norton de Matos!"
A voz grave que tinha, forte e convicta, bafejada de indisfarçável regozijo, moldada por delicadas e efémeras certezas. Repetiu o slogan até ao dia 12 de fevereiro, a véspera das eleições. O dia em que o general anunciou a desistência.
"As condições não estão reunidas... Ao diabo com as condições! Assim nunca lá vamos."
A voz finalmente murcha e derrotada. O percurso a chegar ao fim. Acabavam-se os slogans e adormecia de novo a esperança.
Mas havia mais.
Não se falava alto no país ordeiro e, se se fazia, era preciso silenciar quem ousava. Logo a seguir às eleições veio a perseguição, para que acalmassem de vez os ventos e baixassem os dedos os que lhes mediam direções. Alheio a tudo, Eduardo não vislumbrou o perigo e o pai ignorou-o, propositadamente. Só Juliana estava atenta. Na noite em que a fatura chegou, foi ela que acordou Eduardo, que dormia placidamente.
"Eduardo!"
A voz da mãe atravessou-lhe com dificuldade o sono.
"Eduardo acorda, filho! O teu pai ainda não chegou!"
Quatro da manhã. O pai saíra para uma reunião depois do jantar. A mãe avisara que talvez fosse melhor não ir, mas ele queria mostrar as feridas abertas no balanço da candidatura, dizer-se traído e bater com a porta. Eduardo tentou acalmá-la. Não era a primeira vez que o pai chegava tarde, mas a mãe interrompeu-o nervosa, a voz a atropelar-se num grito.
"Não filho! Preciso que vás ver dele!"
Juliana fizera a leitura da situação. Percebia que tinha havido um convite ao descuido durante as eleições. A polícia política estivera calma, houvera poucas prisões, mais liberdade de expressão e dizia-se que o regime começava a mostrar frestas, mas eleições ganhas e as prisões já tinham começado. Essa noite, tudo podia ter acontecido.
Eduardo obedeceu, mas como miúdo contrariado, aborrecido pelo sono interrompido e convicto de alarmismo infundado. Conduziu até à direção que a mãe lhe dera e estacionou o carro algumas ruas antes, como ela aconselhara. Andou alguns minutos na madrugada fria até chegar a uma casa térrea com portas fechadas e luzes apagadas. A casa correspondia ao número, mas não havia qualquer movimentação dentro dela. À volta, o silêncio de uma rua tranquila na fronteira da cidade. Acendeu um cigarro e decidiu avançar mais algumas casas, talvez a mãe lhe tivesse dado o número errado. A meio da rua, pelo canto do olho, passou-lhe o rasgo breve de um movimento rápido, apenas percetível na quietude absoluta: uma cortina que se fechou com pressa no outro lado da rua e o deixou desconfiado de que alguém o observava. Manteve o passo inalterado e fingiu não ter percebido. Caminhou até ao fim do passeio, sem encontrar sinais de vida na rua comatosa. Resolveu regressar atrás e mudou propositadamente para o passeio do lado contrário. Abrandou ao passar pela janela. Tudo dormia. Podia ter visto movimento, ou tê-lo apenas imaginado.
Indeciso sobre como prosseguir, voltou a cruzar a rua e arriscou bater à porta da casa térrea. Bateu devagar, mas a madeira fez eco no vazio da noite. Olhou em volta. Silêncio e quietude. De dentro, não vinha resposta. Nem ruído, nem luzes. Não valia a pena insistir. Resolveu regressar a casa. Provavelmente a reunião teria terminado pouco antes dele sair e tinha-se desencontrado com o pai, um a chegar e o outro a sair. Ou a reunião tinha mudado de sítio. Ou, no seu término, tinha havido outros afazeres. Havia muitas explicações antes de só sobrar inquietação. Mas então, uma porta abriu-se. Não a da casa onde batera, mas a da janela onde a cortina se mexera. Uma cabeça espreitou, olhou em volta e fez-lhe um gesto para que se aproximasse. Eduardo obedeceu. Um vulto na noite que na proximidade se revelou um idoso descarnado, ligeiramente corcunda, com um rosto de pele fina, adoentada na cor, a descair dos ossos salientes.
"Procura alguma coisa?" perguntou-lhe com voz sussurrada. Eduardo decidiu confiar.
"Sim, procuro" respondeu no mesmo tom. "Creio que conheço alguém que era suposto estar naquele edifício esta noite."
O velho escrutinou-o. Provavelmente averiguava também de quanta confiança deveria dispor. Hesitou por momentos, mas o pijama fino de algodão na madrugada fria exigia-lhe decisão célere.
"Entre" disse por fim, abrindo a porta que conduzia a uma pequena sala iluminada por uma lamparina de azeite. Eduardo era alto e o teto da casa tão baixo que quase lhe tocava a cabeça. O velho não o convidou a sentar. Ficaram de pé perto da entrada, colados à porta, a falar em sussurros.
"A minha esposa está a dormir e não ia gostar de saber que me meto onde não devo" a voz húmida, ensopada de catarro. "Mas eu estou velho e cansado, farto disto tudo. Não quero saber!" Um brilho fugaz pousou-lhe nos olhos escavados. "Por acaso não tem aí um cigarro?"
Por instantes Eduardo colocou a hipótese que fosse apenas isso. Que não houvesse história ou matéria que contar, mas tão simplesmente um desejo de nicotina na calada da noite. Abriu a caixa dos cigarros e ofereceu-lhe um. O velho recebeu-o com mãos ossudas de pele escamada. Eduardo acendeu-lho e acendeu também um para ele. Se fosse só isso, melhor. Mas o velho aspirou o cigarro duas vezes e começou a falar.
"Vieram por volta da meia noite. Eu estava à janela. Já não durmo grande coisa, com as dores nestas costas desgraçadas. Comecei a vê-los chegar. Saíram uma porrada deles de dentro dos carros, devagarinho, para não fazerem barulho. Só então me apercebi de quem eram. Fechei logo a janela, já um deles me tinha topado. Não vi mais nada, mas ouvi. Devem ter levado uma série de gente. Gritaram somos presos políticos, avisem as nossas famílias! Gritaram uma série de nomes, mas eu não me lembro de nenhum."
Aspirou outra vez, dedos de fumo a desaparecerem garganta adentro.
"A minha mulher veio à sala em pânico. Diz coitados, coitados, mas depois não quer meter-se. Disse logo vamos para a cama, Zé, não vão eles vir aqui. Eu fui, mas já não consegui dormir. Aqueles gritos ficaram-me cá."
Pousou os olhos murchos em Eduardo.
"O que lhe tenho a dizer é só isto: se procura alguém que estava ali dentro hoje à noite, saiba que foi levado."