Patricia Mazuy esteve em Lisboa e falou-nos sobre “Bowling Saturno”, hoje nos cinemas.
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Quase a completar 65 anos, Patricia Mazuy é um valor seguro do cinema francês. De tal forma que o recente LEFFEST lhe dedicou uma retrospetiva, tão necessária quanto, de todos os filmes que realizou, apenas estreara por cá “Saint-Cyr”, realizado em 2000. Agora, enquanto se aguarda a chegada ``as salas, já confirmada, do seu último trabalho, “A Prisioneira de Bordéus”, estreia hoje o filme anterior, o notável thriller “Bowling Saturno”.
O filme é protagonizado pelo próprio filho da realizadora, Achille Reggiani, neto do grande nome da canção francesa, Serge Reggiani, com cujo filho Patricia Mazuy casara. No filme, o filho bastardo do antigo dono de uma sala de Bowling herda a sua gerência, mas a sua personalidade é desequilibrada. E pasme-se, no Portugal de 2024 houve salas que se recusaram a passar o filme, devido a uma fortíssima cena de sexo e crime a que se assiste… Aproveitámos a presença da realizadora em Lisboa para irmos ao seu encontro.
Está entre nós para uma retrospetiva dos seus filmes. Quando olha para trás, como vê a sua obra?
Cada filme conta-me o momento em que o fiz. Mas normalmente só vejo as coisas que não estão bem.
O seu único filme que estreou em Portugal até hoje é o “Saint Cyr”.
Na altura ainda se filmava em 35mm. Eu tinha sempre um problema na terceira bobine. Mas o início do filme é muito bom e a parte final muito forte, na descida ao pesadelo.
Olhando para os seus últimos filmes, há um tema que surge em todos, a relação do indivíduo com a lei. É algo que a interessa neste momento?
Em “Peaux de Vaches”, o meu primeiro filme, já havia a prisão. Esse tema sempre me interessou, porque cheguei ao cinema por gostar tanto de westerns. É o meu prisma binário de cinema.
Este último ciclo iniciara-se com “Paul Sanchez est revenu!”, que também nunca estreou por cá.
Não foi uma ideia minha, mas do Yves Thomas, o meu coargumentista. Eu estava a trabalhar num outro argumento mas não o consegui montar, era muito caro. Era um filme sobre o Partido Comunista russo, de 1929 até hoje. Politicamente também não era possível. O “Bowling Saturno” já o pensámos em conjunto.
Qual foi o ponto de partida do “Bowling Saturno”?
Quando estava a montar o “Paul Sanchez…”, o produtor viu essa mistura de trágico e cómico. Em França houve quem adorasse e quem não compreendesse o filme. Mas o produtor pediu que eu e o Yves Thomas escrevêssemos o que ele definiu como um thriller feroz. Começámos por escrever um filme de vampiros.
Como é que evoluiu para o filme que vemos agora?
Não estava a funcionar, era demasiado sinistro. Ao fim de um ano decidimos começar tudo de novo. O Yves perguntou-me se havia algum local em especial onde tivesse vontade de filmar. Foi dele a ideia uma sala de bowling na cave e o apartamento do pai lá em cima. A partir daí entrei a fundo, era um cenário surrealista, mas belo.
Qual foi a reação do produtor, quando finalmente leu a história?
Ao fim de mais um ano demos-lhe o guião a ler e ele disse que ia ser difícil arranjar dinheiro para fazer o filme, porque não era divertido. Pois não, não podia ser divertido. Quando se pede um thriller feroz, não estamos ali para brincar.
Visualmente, quais foram as principais influências?
A primeira questão foi encontrar uma sala de bowling onde pudéssemos filmar, onde o teto não fosse muito baixo e as paredes não fossem brancas. Encontrámos a sala de bowling numa localidade e o exterior e o apartamento noutra. A esquadra de polícia e a boîte numa outra. Foi complicado para as filmagens, mas não tínhamos escolha.
E a paleta de cores?
A sala de bowling que encontramos tinha as paredes vermelhas. Isso definiu tudo o resto. Foi por isso que pintámos o apartamento de verde. A esquadra também foi difícil, é um local tantas vezes visitado pelos telefilmes.
A cena de sexo e violência é muito forte…
É difícil pedir a dois jovens atores para estarem nus, de tentar matar alguém, de resistir a ser morta. E o ator que interpreta o papel é meu filho. Foi o Yves Thomas que me convenceu a fazer um casting com ele, porque o tinha visto no teatro. Mas era impossível que ele interpretasse aquela cena comigo na mesma sala. Pedi a uma pessoa da equipa para ser responsável pela proteção deles.
Como é que fez então para dirigir a cena?
Essa pessoa da equipa estava escondida a um canto onde eles filmavam e eu estava numa outra sala e só entrava quando eles já estavam vestidos. Só me deixavam entrar quando era bom para eles. Mas foi uma cena muito dura de fazer. Houve uma altura em que lhes queria dar uma indicação, mas não me deixaram entrar, ainda não estavam apresentáveis.
E os atores, como é que reagiram à cena?
Foi uma cena que preparámos bastante. Pediram-me que lhes explicasse bem como eu a via. Eles sabiam que ia chegar o dia de a fazer. Eu não estava consciente, uma morte é tão corrente num thriller. Mas fazer uma cena de sexo é bastante aborrecido, só que ali era importante. Eu estava muito intimidada. No papel a cena tinha meia página. Não havia nenhuma marcação em especial, a não ser o fim da cena.
Não vamos desvendar o que se passa…
Em França cometeu-se o erro de falar demasiado dessa cena, quando há uma outra cena perturbadora, a cena com os caçadores. Há espetadores que me disseram que tiveram mais medo na cena do jantar dos caçadores que na cena do crime.
E a Patricia tem um grande pudor, há outras mortes que se seguem, mas já não as vemos.
Não era necessário mostrá-los. Temos de acreditar no cinema. Há filmes em que o efeito de repetição funciona, mas aqui tornar-se-ia voyeurismo. E complacente. Basta ver o crime uma vez. Depois, vemos os cadáveres.
O facto de ser o seu filho não lhe causou nenhum problema moral ou ético, sabendo à partida que o filme era tão violento?
Foi por isso que colocámos uma barreira muito forte entre os dois. Isolávamo-nos um do outro. Ele nem vinha comer com o resto da equipa. Criámos uma relação puramente de trabalho. Sabíamos os dois que o papel dele era muito difícil. Quase que não falava com ninguém, caso contrário ver-se-ia relegado ao estatuto de filho da realizadora. Eu nem lhe falava, a não ser quando era para fazer uma cena.
Já fez alguns trabalhos para televisão…
Gosto muito de um que fiz com uma atriz portuguesa, a Rita Blanco. Ninguém viu esse filme, mas ela é genial. Penso que a qualidade da produção de ficção na televisão em França está a subir, mas não vejo muita televisão. Há algum tempo, como precisava de dinheiro, quis trabalhar para a televisão, mas disseram-me que era muito velha. Já não faço televisão há muito tempo.
Que relação tem com Portugal?
Vim uma vez mostrar o “Sport de Filles”, não havia ninguém na sala, fui-me logo embora, foi sinistro. Mas já tinha trazido os meus filhos a Lisboa. Eu vivia na província e havia uma ama que era portuguesa. Agora vive em Rennes, vejo-a muitas vezes. E quis vir conhecer o país dela. Mas foi em agosto, foi horrível, só havia estrangeiros.
E o que conhece do cinema português?
Não conheço muito bem. Vi alguns filmes da Rita Blanco e do Oliveira, os mais antigos. Por vezes penso que o cinema português é muito bom, mas um pouco aborrecido.