"Três andares", o novo filme do realizador italiano, é candidato à Palma de Ouro.
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Nos últimos dias circularam em Cannes alguns rumores de que as medidas sanitárias iam tornar-se mais apertadas ou de que, mais radicalmente, a continuidade do festival estaria em perigo. Numa das suas várias subidas ao palco para apresentar as equipas dos filmes, o responsável máximo pela programação de Cannes e seu principal rosto, Thierry Frémaux, veio desdramatizar a situação.
Embora os números não sejam oficiais, Frémaux referiu que são feitos diariamente cerca de três mil testes, obrigatórios de dois em dois dias para quem não tem ainda o certificado de imunidade, o que representa, estando-se já a meio do festival, entre 15 e 20 mil testes. Segundo Frémaux, terão sido detetados, no máximo, cinco casos positivos.
O festival decorre assim dentro de uma certa normalidade, com as salas a poderem albergar 100% da lotação, mas com uso obrigatório de máscara durante as projeções. E foi nessas circunstâncias que se viu o último filme de Nanni Moretti, desta vez baseado numa obra prévia, um romance do escritor israelita Eshkor Nevo.
"Três andares" conta a história dos habitantes de um prédio de Roma, cujas vidas se cruzam, por vezes de forma trágica, outras de maneira inesperada. O que Moretti filma são essas circunstâncias da vida que nos vão levando de um ponto para outro das nossas existências. O filme começa aliás, de forma simbólica, com um nascimento e uma morte.
Voltando a pisar os terrenos do comovente drama "O quarto do filho", que lhe valeu a Palma de Ouro há precisamente 20 anos, embora desta vez de forma coral, assente numa realização de elegância e bom gosto a toda a prova, em "Três andares" Moretti filma a culpa e a redenção, a perda e o luto, o desejo e os seus limites sociais, a lei - o próprio Moretti interpreta um juiz - e a moral.
O dilema para os italianos prendia-se, ontem ao fim da tarde, entre assistir à estreia mundial do filme do seu mestre atual do cinema ou encontrar um local para ver a final do Euro entre o seu país e Inglaterra... Mas se Moretti pertence aos consagrados, à chamada "família de Cannes", não sendo pois surpreendente a qualidade do seu trabalho, o mesmo não se pode dizer de Juho Kuosmanen. Apesar de já ter mostrado em Cannes o promissor "O dia mais feliz na vida de Olli Maki", com o seu novo trabalho, "Compartimento n.º 6", coloca-se desde já como um dos grandes favoritos a fazer parte do palmarés final.
O filme acompanha uma finlandesa que se desloca de comboio na direção de uma localidade russa - na realidade soviética, visto o filme se desenrolar na década de 1980 - situada em pleno Ártico, para ver uns desenhos na rocha com mais de 10 mil anos. Essa realidade arqueológica passa para segundo plano, e o que o filme retrata é o percurso dessa mulher à beira dos 30 anos, deixando para trás uma namorada que descobre que a engana e encontrando nesse apertado compartimento de comboio um jovem russo com quem estabelece uma relação de enorme cumplicidade.
O filme é uma pequena pérola, com um trabalho notável de imagem - é tão difícil filmar num comboio em marcha -, uma interpretação soberba por parte dos dois protagonistas e uma perceção lúcida da vida e de como tudo fazemos para concretizar os nossos desejos. Um filme que se espera venha a merecer atenção por parte dos distribuidores portugueses.