Em Cannes, realizadora franco-portuguesa traça olhar caricatural sobre aldeia transmontana
"Alma viva", filme de abertura da Semana da Crítica, é a primeira longa de Cristèle Alves Meira.
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Primeira presença portuguesa na edição deste ano do Festival de Cannes, "Alma viva" assinala a estreia no formato de longa-metragem da realizadora francesa de origem portuguesa Cristèle Alves Meira, depois de algumas curtas-metragens, como o promissor "Campo de víboras", com passagem pela Semana da Crítica que, na lógica de acompanhamento dos realizadores que promove, patrocinou esta coprodução entre produtoras francesas e a portuguesa Midas Filmes.
Provando uma vez mais que a passagem da curta para a longa tem sempre os seus riscos, "Alma viva" acaba por oferecer apenas um retrato bastante superficial e sobretudo grotescamente caricatural sobre uma pequena aldeia do nordeste português. É aí que vive uma garota, interpretada pela filha da própria realizadora e que é um dos poucos aspetos positivos do filme.
Salomé passa o verão na aldeia, na companhia da tia e da avó, com quem mantém uma relação de cumplicidade. A morte desta vai desencadear uma sucessão de eventos que traz ao de cima conflitos latentes na localidade, onde já chegara outro tio, emigrante em França como a mãe, que parece não saber quem terá sido o pai de Salomé.
Começam aqui os problemas do filme, que mostra os portugueses como uma cambada de retardados, com vizinhos a atirar pedras ao cortejo fúnebre, irmãs a baterem-se entre si à frente do caixão da mãe, que acabam por deitar por terra, famílias com o seu tontinho de serviço, diálogos onde não podem faltar asneiras... O lado espiritual do filme não é nunca desenvolvido, dando-se uma pincelada aqui e ali, como uma aparição dos tradicionais caretos que deve deixar o espectador pouco familiarizado com esta tradição a pensar tratar-se de mais uma bizarria dos pobres portugueses, que até têm de ser eles a colocar o caixão na cova, já que padre e coveiros pura e simplesmente desapareceram da equação.
O filme tem potencial. A fotografia de Rui Poças oferece alguns momentos de grande beleza e Alves Meira consegue contar a sua história misturando atores profissionais, como Ana Padrão, com gente da aldeia. O problema é o olhar, quase de desprezo, sem qualquer ternura pelo país e pelas pessoas que mostra. É um olhar típico de quem vem ao nosso país uma vez por ano e, no seu conforto parisiense, se acha superior. E não é.
Sair de um filme completamente falhado e com tantos buracos no argumento como um queijo gruyère para o russo "A mulher de Tchaikovsky" reconcilia-nos no entanto com o cinema. É verdade, Cannes mostrou um filme russo. Mas Kirill Serebrennikov, cuja presença no festival foi bastante emotiva, é claramente um dissidente de Moscovo. Já com dois filmes exibidos em Cannes, na segunda vez que uma obra sua foi selecionada o realizador foi impedido de sair do país para vir apresentar o seu trabalho.
Serebrennikov fora acusado de desviar fundos de uma companhia estatal de teatro, metáfora do regime de Putin para pôr de parte uma voz claramente da oposição. Já em janeiro deste ano, o cineasta foi autorizado a deslocar-se à Alemanha, país onde agora vive, para tratar de um novo projeto. Entretanto, concluiu "A mulher de Tchaikovsky", uma poderosa evocação da vida do compositor, através do retrato da mulher que o desposou. Quando dizem que o cinema mudou e que já não há obras como antigamente, surgem sempre filmes como este a mostrar-nos que é possível. O cinema, enquanto formato artístico, é possível e existe.
Mas o dia de ontem foi seguramente o Dia Tom Cruise. À tarde, cerca de um milhar de pessoas puderam assistir a uma conversa do ator com um jornalista francês, onde Tom Cruise deixou uma garantia: "Faço filmes para serem vistos no cinema. Posso garantir-vos que em momento algum um filme meu será exibido primeiro numa qualquer plataforma".
Seguiu-se ao fim da tarde a subida da passadeira vermelha para a exibição de "Top gun Maverick", ao lado de Jennifer Connelly e do realizador, Joseph Kosinski, com centenas de pessoas em frente ao palácio dos festivais a aguardar há algumas horas a chegada da estrela de Hollywood.
Antes do início da sessão, e enquanto Tom Cruise recebia uma Palma de Ouro de carreira, uma formação de caças da força aérea francesa cruzou os céus de Cannes, deixando o rasto das cores da bandeira francesa, como todos os anos nos Campos Elísios, no dia nacional de França, o 14 de julho. Um espetáculo impressionante de ver, num fim de tarde culminado com um espetacular fogo-de-artifício, que deixará o dia 18 de maio de 2022 como um dos mais memoráveis da história de 75 festivais de Cannes.