Com mais de dois milhões de espetadores em França, “Siga a Banda!” é um dos sucessos do cinema francês. A história fala de um maestro de uma orquestra de Paris que precisa de um transplante e descobre que foi adotado e que tem um irmão que toca numa banda filarmónica. O realizador Emmanuel Courcol falou com o JN.
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Um dos temas centrais do filme é o determinismo social.
É uma questão que me preocupa. Penso sempre o que seria de mim se tivesse nascido numa outra família, num meio diferente. E gosto de colocar em confronto personagens que vêm de meios sociais muito diferentes. De medir precisamente a distância entre eles e o que o destino lhes proporciona de diferente. Neste caso, há dois mundos que, a priori, não se deviam encontrar. É essa a base da comédia e é um tema que permite desenvolvimentos mais profundos, sociais, filosóficas, políticas.
E a música, que importância tem na sua vida?
Eu ouço muita música, vou a concertos. A música faz parte da minha vida. Mas não sou músico, comecei só a tocar um pouco de guitarra, como toda a gente, aos 14 anos. Ouço sobretudo muito música clássica, por isso senti-me à vontade neste registo. E passei a minha adolescência a ouvir o meu irmão, que tocava trompete no quarto ao lado. Já havia ali uma história de irmãos e uma história de música.
No filme, ouvimos de Charles Aznavour ao Bolero de Ravel.
É música, com “M” grande. É verdade que há músicas muito diferentes, mas usam uma linguagem comum. Espero que isso se sinta no filme, que eles falam a mesma língua, apesar de todas as diferenças sociais. Apesar de uma educação muito diferente, compreendem-se rapidamente. Há um encontro fraternal e um encontro musical.
A integração da música na história tem assim também uma função simbólica?
Isso aconteceu com naturalidade, porque era já a base do guião. Eu e a Irène Muscari, a minha coargumentista, que é uma grande melómana, tínhamos já as nossas referências, e depois trabalhámos com um conselheiro musical, Michel Petrossian, que é um grande compositor de música contemporânea e compôs o excerto que ouvimos no final. Foi ele que nos acompanhou durante a escrita, no que diz respeito a todos os aspetos técnicos.
Precisamente, a música é algo de tão técnico, como é que o Benjamin Lavernhe se transformou num reputado chefe de orquestra?
O Benjamin trabalhou durante vários meses com um chefe de orquestra. O Benjamin é um grande trabalhador, não é por acaso que pertence à Comédie Française. Levou tudo muito a peito. O que lhe pedi foi que se acreditasse que ele era mesmo chefe de orquestra. Já vimos muitas vezes no cinema atores que se limitam a agitar os braços. Mesmo alguns dos músicos da orquestra disseram-lhe que já tinham sido dirigidos por maestros piores.
O Pierre Lottin é o oposto do Benjamin Lavernhe. Foi esse contraste que quis criar?
Claro que sim. E cada um deles encarna o meio de onde vêm. Já tinha trabalhado com o Pierre no meu filme anterior, é um ator que admiro enormemente. Pensei mesmo nele quando criei a personagem. Sem o saber, ele foi a inspiração para a personagem. O Benjamin chegou mais tarde, durante o casting. Com eles os dois, as suas diferenças são evidentes, não foi preciso forçar nada para que fosse credível.
Como é que o Pierre Lottin trabalhou a parte musical?
O Pierre também é músico. O Benjamin não é músico profissional, mas toca guitarra e bateria e tem muito bom ouvido. Mas o Pierre é um bom pianista. É verdade que não toca piano no filme, mas começou a aprender trombone e é ele mesmo que toca no filme.
A relação entre os dois tem altos e baixos. Filmou por ordem cronológica, para que essa relação se fosse construindo?
Em todas as minhas rodagens, tento respeitar ao máximo a cronologia da história. É melhor para toda a gente, sobretudo para os atores. É claro que não pode ser sempre assim, depende sempre dos décors e da disponibilidade de toda a gente. Mas quando temos atores tão bons esse problema não existe.
Como é que trabalhou então esse aspeto tão importante do filme, a relação entre os dois irmãos?
Não quis que fosse um filme pessimista. Mesmo sendo no fundo uma comédia, já há questões um pouco mais duras no filme. O que me interessava era precisamente ver como essa relação fraternal se construía. Há muitos sentimentos contraditórios, há admiração, há afeto, mas também há um sentimento de injustiça, há inveja. Há uma grande complexidade, o que torna mais interessante ver como essa relação se constrói.
O filme tem um tom de comédia muito subtil, bem construído.
É o que tenho feito nos meus filmes, vem com uma certa naturalidade. Eu e a Irène divertimo-nos bastante na fase da escrita. Mas depois tenho um consultor, que vem ler o que escrevemos. Trabalha mais na televisão, mas tem esse sentido do timing da comédia. Posso aproveitar só cinco por cento do que ele propõe, mas confere ao filme uma outra fantasia, um outro tempero, dá-lhe um pouco de sal.
Há alguma coisa de mais pessoal nesta história?
Eu venho de uma família com duas irmãs e um irmão. Tinha uma grande vontade que tudo se passasse bem entre os irmãos do filme. O que é bonito de ver é como, apesar de virem de meios tão distantes, podem contruir uma relação de amor fraternal. E tive a sorte de ter dois atores que se entenderam muito bem. Com as suas diferenças, mas cúmplices. Foi muito agradável trabalhar com eles e ver como construíram essa relação.
Apesar de tudo, o mundo de Jimmy, o “irmão pobre”, parece interessá-lo mais.
Dramaticamente, era mais interessante deslocalizar o chefe de orquestra e não o contrário. Vê-lo aterrar, por assim dizer, na vida a sério, no mundo real. Conhecer aquelas pessoas de verdade e não só através das notícias dos jornais ou das televisões. E é um terreno humano mais rico.
A banda filarmónica representa também os laços comunitários que existem nas pequenas localidades.
Com aquelas bandas há mais ligações sociais, mais possíveis interações. Há o prazer de fazer música em conjunto, mas há também uma necessidade social.
Tem mantido contactos com a comunidade onde filmou?
O Presidente da Câmara fez-nos cidadãos honorários da vila. Estivemos lá e fomos acolhidos numa grande cerimónia. A banda filarmónica tocou. O filme foi um acontecimento extraordinário para a vila de Lallaing, no norte de França e voltei a sentir o calor humano com que sempre nos acolheram. Foi muito tocante.
Como é que se integrou naquele mundo das bandas filarmónicas?
Sabia da sua existência, mas não conhecia nada sobre as filarmónicas. Claro que fiz as minhas pesquisas, vi vários documentários, mas foi ao contactar as pessoas de várias bandas que pude sentir a realidade daquela existência, da sua maneira de ser. Foi um grande prazer, fiz grandes amigos.
Podemos dizer que as filarmonias são também um local de resistência?
Sim. As bandas de música são um meio de resistência ao mundo digital. À desmaterialização do nosso mundo. Ao individualismo. É uma forma de continuar a cultivar as relações humanas. De fazer coisas em conjunto, tão simples como isso. E uma forma de procurar uma transcendência, através da beleza da música. Quando os encontro tenho a impressão que é algo de vital para eles.
O sucesso do filme tem-lhes dado uma imensa projeção, imagino.
Sim, e acho que muito mais gente se lhes devia juntar. Muitas destas filarmónicas têm as suas próprias escolas. São amadores, benévolos, que fazem formação, a crianças e a adultos. Mesmo pessoas de uma certa idade chegam lá com o desejo de aprender a tocar, por exemplo, flauta, e dois anos depois já tocam algumas coisas. Acho isto magnífico.
Também serve para esquecer alguma dureza da vida…
Sim, muitas destas filarmónicas estão situadas em regiões que sofrem muito, económica e socialmente. Para muita desta gente, é uma razão de viver.
O filme é um dos bons sucessos recentes do cinema francês.
Foi bem recebido pela imprensa, pelas pessoas do meio e pelo público. É o sonho de qualquer um. Também ganhou o prémio do público em muitos festivais. E recebo mensagens de muita gente. É um grande reconhecimento.