Vânia Doutel Vaz apresentou ontem "O elefante no meio da sala", no Teatro do Campo Alegre, no Porto. Espetáculo tem nova récita esta sexta-feira, às 19.30 horas.
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Há uma dissemelhança entre discursos autorais e discursos biográficos, porque se nuns o ego se intromete dando azo a relatos de atos misericordiosos e grandes feitos, sempre com uma pitada de autopiedade, nos outros a verdade entra como uma patada no estômago, como a realidade.
Vânia Doutel Vaz, bailarina e coreógrafa foi este ano programada no GUIdance, no Festival Dias da Dança (DDD) e no Alkantara, entre outros. Não é fruto de um golpe de sorte, ou de uma "trend" conceptual, ela conseguiu produzir um discurso desconforme, não se parecendo a ninguém (não na técnica, mas no resultado final) assemelhando-se apenas a si mesma, e a unicidade merece ser premiada.
Quando falou sobre o seu espetáculo, aos jornalistas, prometia apenas debruçar-se entre "a realidade e a performatividade", mas o que apresentou foi muito além disso.
O jogo começa no encontro com o público, em que nos vai apresentando jogos de palavras de duplo sentido, e conta todas as possibilidades de espetáculos que pensou ter feito. Neste nível de vulnerabilidade, já somos quase parte da família até porque tem a rara qualidade de nos fazer rir e nos comover simultaneamente.
Uma das propostas era que o título fosse "Se tudo correr mal eu danço". Não correu. Porque dançar é o seu valor seguro, fê-lo com a Royal Academy of Dance, naquele tempo em que "não era muito flexível e não punhas as pernas na cabeça", depois no Conservatório Nacional, no Fórum Dança, na Nederlands Dans Theater, na Cedar Lake Contemporary Ballet e no espetáculo "Sleep No More" em Nova Iorque.
Depois conta que um dia gostava de dançar o mítico "In the middle of somewhat elevated", de William Forsythe, mas chamá-lo de "In the middle of somewhat excavated", porque o que lhe interessa é chegar ao âmago das questões, e nós vamos com ela. Conta-nos sobre as probabilidades de fazer um espetáculo só com diagonais e faz questões científicas, como uma criança : "Quando chorámos perdemos parte do corpo?". Depois, como uma pré-adolescente mostra-nos as gracinhas que consegue fazer a "gargalhada silenciosa, a contagiosa-contagiante" e numa inusitada comunhão, o público chora e ri com ela também.
Noutro dos jogos que nos propõe vai despindo camadas e camadas de roupas, sempre às flores, porque os bailarinos têm "formas muito estranhas" de retirar as roupas e acicata a audiência: "Queres que tire por cima ou por baixo?". Cada peça fica colocada como uma memória: há a camisola de braços cruzados como quem dança a Macarena, há as meias em forma de "passé" e desta forma cria uma estrada de memória gestual.
No fim canta-nos várias canções e repete que "ama estar no palco" ameaçando-nos que temos de ficar a admirá-la, ao som de "Feeling Good" de Nina Simone. Uma pérfida ameaça a repetir.
O programa do DDD segue hoje com o funaná de Djam Neguin, Corpo+Cidade e nova récita de Mónica Calle.