A encenadora Mónica Calle apresenta esta quinta feira, em estreia nacional, no Festival Dias da Dança (DDD) "Só eu tenho a Chave desta Parada Selvagem".
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O que aconteceria se houvesse um cruzamento entre Stravinsky, Rimbaud e Nijinsky com uma aura espectral de Luna Andermatt? Estas personalidades foram a inspiração de Mónica Calle para "Só eu tenho a Chave Desta Parada Selvagem", hoje às 21.30 horas no Palácio do Bolhão.
Qual foi o gatilho criativo para desenvolver este novo trabalho?
A história deste trabalho é muito longa, leva mais de dez anos, é ainda anterior ao "Ensaio para uma cartografia". No final de 2012 tinha pensado em fazer com a Companhia Maior, uma versão de "A sagração da Primavera", para mim e para a Luna Andermatt (falecida em 2013). E fizemos algumas apresentações no TAGV com alguns atores, ainda com o Bruno Candé (assassinado em 2020) e alguns intérpretes com quem tinha trabalhado em Vale de Judeus.
Durante dez anos não trabalhou mais a ideia ?
Depois fiz uma segunda abordagem, na Materiais Diversos, mas nessa época a Luna Andermatt já estava muito doente. A Luna foi uma pessoa muito marcante para mim. E de repente estava tudo a desmoronar-se, estávamos a sair da Casa Conveniente e a Luna sempre teve uma adoração por Stravinsky, não tanto com "A Sagração da Primavera", mas com "O pássaro de fogo". Então pensei que ela poderia dançar as suas partes favoritas da obra. Foi a partir da Luna que me apaixonei por Stravinsky.
Com o desaparecimento de Luna Andermatt decidiu abandonar o projeto?
Na segunda abordagem que fiz, vi um documentário de Bernstein (maestro), uma masterclass a ensaiar "A Sagração da Primavera" com uma orquestra. O que propûs então foi trazer um elenco de street dance e a bailarina Sara Vaz, em que o pressuposto era que o espetáculo não acabasse enquanto eles conseguissem continuar a dançar. Seis horas mais tarde eles não paravam e eu decidi parar o espetáculo.
A forma mais fácil de vencer uma paixão é por esgotamento?
A partir desse momento levei nove anos com o espetáculo "Ensaio para uma cartografia", e depois decidi parar e voltar atrás, reatar onde deixei o trabalho com um elenco masculino. Fui acrescentando pessoas por audição trouxe três de Viena, e depois mais três numa audição no Porto e a ideia foi-se desenvolvendo. Um elenco construído com camadas de pessoas, sobre os anos.
É importante retomar os processos criativos?
Somos pressionados, a criar e deitar uma coisa fora, a voragem acaba com tudo e torna-se um processo inócuo e até obsceno. O aprofundamento é uma forma de resistência e de vitalidade. Temos a oportunidade de criar laços, ligações, de crescer em conjunto e de construir memória. Nesta apresentação o trabalho deu uma grande volta, porque tenho menos medo, e pressão para me afastar. Não posso ter medo de trazer as coisas que fomos descobrindo, como em todos os trabalhos as coisas acabam por ser causa umas de outras.
Como decidiu o título da obra?
"Só eu tenho a chave desta Parada Selvagem" é um título roubado de um poema do Rimbaud que me acompanha desde sempre. Isto significa que cada um possa ter a chave da parada que é a vida, em toda a sua dimensão e toda a sua plenitude. Quando envelhecemos e quem está vivo e vai morrer mais cedo, tem uma obrigação de deixar um futuro com esperança com vitalidade, comunhão e fraternidade. Uma obrigação de construir um futuro com vitalidade e alegria, com diversidade e com escuta.
É por isso que faz a escolha de um elenco transgeracional ?
Há uma frase do Renoir: " a grande coisa de envelhecer é haver cada vez mais pessoas de quem eu gosto". E eu vou trazendo cada vez mais pessoas a cada projeto, o que obviamente tem uma consequência no trabalho. Isto é a transgeracionalidade.
Como produto final que objeto artístico é este?
"A Sagração da Primavera" é uma narrativa clara sobre o renascimento, um ciclo que envolve o sacrifício. É preciso dançar até morrer para se renascer. É uma ideia de ciclo em que acredito e os espetáculos tem de devolver isso: essa fé, essa vitalidade. Eu não sou coreógrafa, nem eles são bailarinos. O que eu pretendo é uma performance em que eles possam fazer um conjunto, sem se anularem como indivíduos. Um coletivo, uma repetição. Um trabalho sobre a música e sobre a palavra, aqui entraram também os "Diários de Nijinski", interessavam-me não tanto as suas coreografias, mas a sua vida e as suas ideias. Também encontrei a ideia como os maestros trabalham com os seus intérpretes como algo de muito estimulante, pelo virtuosismo, a precisão e a repetição.
Ficou mais uma vez excluída dos apoios sustentados da DG Artes...
Estamos há muitos anos sem financiamento da DG Artes, vamos ver o que acontece para continuarmos a trabalhar. Durante a pandemia foram buscar todos os que estavam abaixo da linha de água o que foi bom. 2023 não é um ano complicado porque tínhamos co-produções. Podemos desenvolver trabalho alternativas. Mas não tem sido isso que me tem parado. O embate de há quatro ou cinco anos foi muito violento, nem sequer contestámos.
O programa do DDD segue hoje com Vânia Doutel Vaz e Emmanuel Eggermont.