Ser retornado, hoje, "já não é um estigma, é só um rótulo, como ser alentejano", diz a escritora Dulce Maria Cardoso, que esta quinta-feira conversou, numa livraria em Lisboa, com outra autora, Isabela Figueiredo, sobre memórias coloniais.
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A iniciativa Ler no Chiado, da revista "Ler" e da livraria Bertrand, juntou em Lisboa as escritoras Isabela Figueiredo, autora de "Caderno de Memórias Coloniais", e Dulce Maria Cardoso, autora de "O Retorno", para, numa conversa moderada por Anabela Mota Ribeiro, falarem do seu regresso a Portugal, vindas da África colonial.
Isabela Figueiredo regressou de Moçambique quando tinha 13 anos e, desde então, sempre quis escrever um livro sobre a sua história.
"Precisei da vida inteira, mas era realmente isto que queria escrever", disse. O que não quer dizer que não esteja a pagar "uma fatura por escrever na primeira pessoa". Mas Isabela está-se "nas tintas para as consequências disso".
Já Dulce Maria Cardoso, que regressou de Angola há 11 anos, "não podia ser a protagonista" e, portanto, arranjou "uma maneira de ficcionar" aquilo que viveu. "Tornei-me escritora para escrever este livro", confessou.
Para Dulce, "tudo é político" e a forma como hoje se olha para "a metrópole" e "as colónias" não é excepção. "Há lados nesta questão. Ainda hoje é tudo muito extremado, há os contra e os a favor", resume.
Isabela tentou ser "bastante isenta", pois "não há vítimas nem carrascos" nesta história, mas concorda que "ainda é difícil falar com as pessoas" sobre o retorno. Quanto mais agradar: "Uns acham que sou reaccionária, outros que defendo muito os pretos".
"Mesmo não escrevendo na primeira pessoa, paga-se uma factura. Pelos leitores, tanto sou acusada de ser de extrema-direita, como de ser comunista", partilhou Dulce. "Não queria ajustar contas, já passaram muitos anos", seria uma "justiça extemporânea", vincou.
Aliás, comparou, quando daqui a uns anos uma ucraniana escrever um livro sobre os problemas que teve de integração, Dulce já vai sentir-se, ao lê-la, como sendo da "metrópole".
Pretos e negros, nenhuma delas sabe muito bem que palavra escolher. Dulce inclina-se mais para o "politicamente correcto". Isabela diz que está a aprender com os seus alunos a não ter medo de dizer preto, como eles. Isabela escreve no seu livro que tem "alma de preta".
A "metrópole" não era aquilo que esperavam. Dulce sabia que havia pobreza e fome e piolhos, mas nunca pensou que a casa dos avós não teria água.
Isabela desiludiu-se mais. Portugal "era escuro, pobre, pequeno, provinciano, tacanho, pastoril", e ela achava que ia encontrar a Suíça.
Ambas ainda se sentem um pouco "desterradas". "Não pertencemos a esta terra, não nos formamos aqui, somos crioulos", descreve Isabela. "Pertencemos ao sítio onde estão os nossos afectos", sustenta Dulce, sublinhando que ainda "há retornados que vivem cá mas não pertencem".
"Temos a tendência para dizer que já resolvemos tudo e que já não há racismo e que está tudo maravilhoso, e não está", realçou Dulce, falando na "coincidência" de o seu livro apanhar um "Portugal em fim de ciclo, com necessidade outra vez de recomeçar".
Voltar é um assunto difícil, seria sempre um confronto com "a perda, acima de tudo, afetiva". Dulce não quer voltar a Angola, não para ver a corrupção e a pobreza que ela sabe que existem. Responsabiliza também Portugal e confessa sentir "um profundo asco" quando ouve "pessoas contente com o investimento angolano".
Isabela tem vontade de regressar a Moçambique, mas também tem "medo". Não irá sozinha.