"Talvez... Monsanto", de Ricardo Pais, está de volta ao São João, no Porto, em formato revisto e aperfeiçoado. Últimas récitas são este sábado e domingo.
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Ricardo Pais não consegue ficar parado (só se houver uma praia por perto). Antigo diretor do TNSJ, e um dos mais proeminentes encenadores europeus dos últimos 50 anos, regressou com uma reposição e prepara um "tour de force" para 2023, com dois novos espetáculos.
Como vê hoje "Talvez... Monsanto", que vive do encontro de diferentes linguagens artísticas e que, na dramaturgia mais profunda, trata da travessia da vida até à morte?
A dramaturgia é tanto a da música como a do conteúdo literário. O espetáculo de hoje é "o espetáculo". O que fizemos em 2020 cresceu, maturou-se, e é hoje, no fundo, aquilo que todos sonhamos fazer. Não acho que o espetáculo seja sobre a vida e a morte - que de resto é o tema de todo o Teatro; acho sim que é sobre a fluidez dos encontros, o desassombro de olharmos para trás, para a tradição, sem termos medo de que nos roubem o smartphone. Se tem um tema, ele é o da enunciação de tudo o que se perde quando se perde a vida. Aqui, as palavras de Ruy Belo são determinantes em restabelecer a memória das paisagens de um Portugal do séc. XX, formador de sentimentos, de angústias e de desejos. De resto, o espetáculo é sobre as crenças, os sons ancestrais da Beira Baixa, as litanias, as preces e, no fundo, as ânsias do amor, para não dizer do sexo. Isto que atravessa o fado e música da Beira Baixa e as palavras iluminadas do poeta chegaria para um programa de vida. Tudo junto, acorda-nos para o que está em vias de perder-se na nossa tradição cultural e o que se ganhou com a nossa convivência e com a fluidez da nossa descomplexada modernidade cénica. Se algum tema resta é, evidentemente, o do amor de mãe. Na minha cabeça o espetáculo é uma homenagem à mãe dos meus filhos, que entretanto falecera, mas o seu tom de elegia engana. Não há nada de funéreo, nem de autocomplacente; o espetáculo é uma celebração, a sua destreza técnico-artística, que foi uma das marcas do TNSJ, é no mínimo, ainda, surpreendente.
Quais as alterações mais significativas nesta versão e que efeitos produziram no conteúdo e na forma do espetáculo?
A participação em vídeo de Deeogo Oliveira, rodando num arco com uma croça de palha (imagem muito celebrada em 2020 pelo aqui presente entrevistador), corresponderia a uma participação ao vivo que só agora se pôde concretizar. Para além de inúmeros aperfeiçoamentos, nomeadamente as ligações e passagens, que constituem em si mesmas um discurso autónomo, o espetáculo ganha agora uma forma física em dança. Além disso, as palavras e as músicas foram retomadas nas suas possibilidades cénicas, e o trabalho dos atores Luísa Cruz e Simão do Vale Africano está infinitamente melhor tecido. De resto, mantém-se, aperfeiçoado, o que sempre lá esteve: a direção musical de Miguel Amaral, o canto de Miguel Xavier, o trabalho instrumental, a exaltação do adufe nas mãos de Rui Silva. A presença das adufeiras de Monsanto, essa, vem de longe e pode repetir-se até à eternidade.
Em 2020 falou em retirar-se, mas também avisou que não era para levar muito a sério. É impossível um criador ficar parado?
De todo, haja uma praia por perto.
Prepara um regresso em dose dupla, em 2023, que se inicia com a montagem de "Longa jornada para a noite" (1956), de Eugene O"Neill. O que o levou a este texto?
Estou há 30 anos para o fazer. O Nuno Cardoso e a Emília Silvestre convenceram-me. É de pegar o touro pelos cornos.
Segue-se a estreia de "Os Madame", a partir do texto de Maria Velho da Costa, em que partilhará palco com Albano Jerónimo. Que espécie de jogo engendrou para esta peça?
Em 2000 fizemos "Madame" com Eunice Muñoz e Eva Wilma, que já nos deixaram. Agora, eu e o Albano vamos ler as quatro mulheres da peça e ver o que sobra para nós... ou o que sobra de nós. Sem travestimentos, nem ideários, nem demagogias modernas, é um exercício sobre o masculino/feminino.