Carlos Conceição estreia esta semana o seu último filme, "Nação Valente"
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Angola, 1974. A guerra terminou mas um grupo de soldados portugueses vive para lá de um grande muro, sem o saber. Uma missionária portuguesa faz o seu trabalho. Uma jovem angolana tem um encontro trágico com um soldado... É "Nação Valente", alegoria de Carlos Conceição, lançada mundialmente em Locarno e que chega agora aos nossos cinemas.
Uma certa mistura de realismo com o imaginário é o motor do seu cinema?
Deste filme, talvez. Este filme não tem propósitos naturalistas, é importante perceber que não é um filme histórico, em que as personagens representem grupos ou entidades. Não pretende ser um retrato das forças armadas portuguesas.
Há a personagem do coronel, muito vincada...
Representa, de certa forma, algumas ideias extremistas de uma outra época e acima de tudo, ideias que temos visto voltar ciclicamente no presente. Diria que é um filme sobre o presente, mas a olhar para o passado, alicerçado numa alegoria.
O filme tem referências a alguma mitologia africana. Nasceu em Angola. O que persista em si dessa herança, apesar de ter vindo para Portugal muito novo?
Vou lá todos os anos, a minha mãe vive lá, tenho lá casa. É um país com o qual tenho uma ligação constante. Somos convidados a pensar sobre as coisas conforme as perguntas aparecem. É natural que uma pessoa que vive, que cresceu em Lisboa, tenha o gesto, o impulso de plantar as suas histórias em Lisboa, no sítio que conhece. E para mim, essa relação narrativa com Angola é uma coisa também espontânea.
Era o destino a relação entre o soldado e a jovem africana terminar assim?
Por mais que eu queira falar de alegoria, esse episódio é muito mais arquitetado na realidade do que outros do filme. Pensei em várias histórias, antes e depois da guerra, da luta de libertação, onde há este género de dispor dos corpos dos outros. E também há a ideia de mostrar o espírito destrutivo daquela personagem específica.
As sequências com os soldados devem algo a uma cinefilia ligada ao imaginário da representação da guerra no cinema?
A pergunta é ótima, gostava de poder dizer que sim, mas só se foi a um nível subconsciente. Eu gosto de alguns filmes bélicos, como por exemplo o "Full Metal Jacket", que também tem uma espécie de estrutura diptica, e o "Apocalipse Now", que considero uma obra-prima. Alguns dos filmes mais antigos também me ocorrem, mas nunca houve o pensamento de enveredar por uma representação de género, de códigos de género nessa dimensão do filme.
Também há referências a filmes de outros géneros, como o horror...
Uma mão que sai para fora de uma campa, que é a terra, é uma imagem clichê, e eu digo clichê sempre no bom sentido, porque clichê é uma convenção, é para ser usada, carrega muitos mais significados. Acredito que seja possível fazer um filme de zombies, usando só essa imagem, porque a cultura popular associada a esse signo, na verdade carrega uma porção de outras imagens satélites que podem até nem sequer estar no filme, e que de repente são associadas ao mesmo.
Os filmes de zombies são também associados a uma certa dimensão política, sobretudo o ciclo iniciado com os filmes do Romero.
Sim, tem sempre a ver com uma esperada rebelião por parte de um grupo que antes parecia paralisado.
Há pouco referiu o "Apocalypse Now". Há um paralelo entre a personagem da Anabela Moreira e as playmates que vão ao Vietname animar os soldados?
Não, não tive isso em conta. Gosto muito do filme, mas não foi uma imagem que tivesse conscientemente apropriado. Mas realmente faz todo o sentido e há um paralelismo. Há sim uma cena que já me tinha passado pela cabeça no filme, que é uma imagem que também acontece no filme "Pixote, a Lei do Mais Fraco", que é a ideia do adolescente que projeta a imagem da mãe na figura da prostituta e vai abocanhar o seio dela.
A ideia central dos soldados que não sabem que a guerra já acabou vem da "Saga of Anatahan", do Sternberg?
Um dos motores para o filme foi um artigo que li sobre o "Onoda". Eu não vi o filme, mas depois pesquisei, a página da Wikipédia é bastante rica sobre essa figura. Gosto particularmente da ideia de uma pessoa que está no regime de isolamento acidental e que, de repente, o mundo todo muda. Ou seja, a personagem está num casulo, numa espécie de redoma, e não se apercebe das mudanças.
E aquele muro? Que muro é aquele, fisicamente? É um efeito, existe mesmo? Que alegoria lhe está por detrás?
O muro não existe. Existe, alegoricamente, como uma representação das ideias antigas que nos prendem no passado. É uma espécie de gigante quixotesco, que temos de ultrapassar para nos encontrarmos no mundo, para encontrarmos a nossa era, os valores da nossa era.
Onde é que foram rodados os exteriores?
Muitos foram em Angola, na zona de Huíla, na cidade de Lubango. Depois, em Portugal, filmámos na zona de Alcochete, no campo de tiro da Força Aérea, na Quinta da Barroca, que é logo ao lado, e no Samoco, na zona das salinas.
Pode falar um pouco da escolha dos soldados e da preparação física que tiveram de ter para interpretar aqueles papéis?
Comecei há uns 5 anos, com o João Arrais, depois mais tarde com o João Cachola e o Miguel Amorim. O meu propósito, ao testar a dinâmica deles, uns com os outros, era justamente perceber, conhecendo-os, se a sintonia mental deles daria origem a um ambiente de camaradagem interessante, ou se pareceria uma coisa forçada. Alguns deles tornaram-se amigos justamente por causa dessa preparação.
E os restantes, os que se veem menos?
Lentamente fui chegando ao grupo total. Já na fase muito final fiz um casting para encontrar o último soldado de todos. Quando percebi que o grupo era coeso, comecei a testar a cumplicidade deles em programas que fazíamos. Começámos por ir jogar paintball, fazíamos jantaradas. No fim, acabamos por fazer uma espécie de recruta demonstrativa, onde preparámos aquelas coisas todas do léxico militar, com a supervisão do próprio exército.
A figura do coronel é impressionante, quase vampiresca. O Gustavo Sumpta, ao início, parece o Nosferatu. Como é que trabalhou esse lado com ele?
O Gustavo é um doce de pessoa, é o oposto desta personagem. O Gustavo cresceu em Angola, tem uma história de vida não certamente semelhante à minha, mas tivemos a mesma vivência geográfica nas mesmas idades e por isso partilhamos essa relação com Angola. Ele encontrou outra relação com o país que tinha deixado para trás. E com este também.
O filme vai estrear agora cá. Está também prevista estreia em Angola? Vai ser visto de forma diferente cá e lá?
Em Portugal existe este peso em relação à questão da colonização. Em Angola também mas é um peso de caráter diferente. Eu diria que é mais realista a representação da parte angolana neste filme do que a representação portuguesa, que não tem nada de naturalista. Mas não quisemos de maneira nenhuma, em momento nenhum, que fosse um filme histórico, uma representação factual de um episódio qualquer. Pelo contrário, todo o filme é construído à volta de ideias paralelas à verdade.
Curiosamente, já está em exibição outro filme passado em Angola e que fala de guerra, o "Nayola". Parece haver um regresso a estes temas...
Penso que é uma espécie de zeitgeist. Há muitas conversas que são fruto do próprio tempo em que acontecem. O mundo influencia-nos e encaminha-nos em direções específicas, em determinada época estamos mais alerta para uma determinada constatação ou uma reflexão que ainda não tinha sido feita. Os últimos anos têm sido muito ricos em discussões sobre questões pós-coloniais e sobre a dissecação do processo de descolonização.
Há alguma razão que identifique para que isso aconteça?
Houve o caso Bruno Candé, que de repente provou a toda a gente que não é bem assim o que algumas pessoas insistem, que não há tanto racismo assim em Portugal, que não está assim tão instituído. Mas é um facto, continua a acontecer. Esse facto de certa convidou a uma dissecação da própria história e da nossa sensibilidade contemporânea para lidar com as questões de racismo. Por ter-me apanhado a meio da pré-produção do filme também acabou por clarificar-me bastante sobre o potencial do filme.
O filme chama-se "Nação Valente". Há uma tentativa de desmistificação de um imaginário português, pelo lado do militarismo e da presença da religião na sociedade?
É um caminho inverso ao "Non ou a Vã Glória de Mandar". É um filme que faz o percurso inverso da glorificação do exército ou dos militares, da glorificação dos confrontos armados. Como diz o coronel, guerras há muitas, todas iguais. Não é verdade que sejam todas iguais, mas é o verbalizar disto que estabelece um estado de espírito sobre aquele universo, sobre aquele mundo.
E a religião?
A religião é tratada de forma não tão radicalmente contra. Eu usei mais a religião, a imagética cristã, porque a colonização foi muito a tentativa de espalhar a fé, de plantar a fé cristã nas culturas. A personagem da Leonor Silveira representa esse pensamento missionário, um pensamento e um movimento de aculturação. Que é também um gesto colonial.