Quando, em 2016, Bob Dylan ganhou o Nobel da Literatura "por ter criado novos modos de expressão poética no quadro da tradição da música americana", houve uma fação das Letras que se indignou com a entrega do galardão a um músico.
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Mas a música é a forma mais democrática de divulgar poesia: assim o provou repetidamente a história do rock. João de Menezes-Ferreira, autor português, não tinha dúvidas sobre a associação quando lançou, em 2012, a antologia "Estro in Watts - Poesia da idade do rock", que concentrava 563 poesias musicadas, de 170 autores, desde "Blue suede shoes", de Carl Perkins (1955) até "O Superman", de Laurie Anderson (1980). O livro deu o mote ao espetáculo homónimo que o Teatro Experimental do Porto estreia hoje, com direção de Gonçalo Amorim e Paulo Furtado (The Legendary Tigerman).
Num palco repleto de microfones, todos têm direito à palavra que, dita em português e sem a cobertura de açúcar da música, atingem a plenitude do seu sentido. "À margem da sociedade há alguém para me esperar /´à margem da sociedade é onde eu quero estar", declara a atriz de um coro composto por "ovelhas negras", figuras afiladas e ataviadas por uniformes de couro. Aqui reside a assinatura de Gonçalo Amorim, sempre a sublinhar a nostalgia romântica sobre os marginalizados.
Mas nem só de palavras é feito o espetáculo, que tem também uma forte componente musical, com a assinatura de Paulo Furtado. O combo rock é facilmente identificável e tem o centro nevrálgico em Susie Filipe, baterista. Se há beleza no som de umas escovas, nunca nada terá tanta sanha como quando está de baquetas na mão, trauteando o tempo, descabelada e de braços no ar. Uma homenagem indireta a Viola Smith, uma das primeiras bateristas, que morreu há duas semanas com 107 anos.
"Estro/Watts" tem poemas de Bob Dylan, Patti Smith, Elvis Presley, Johnny Rotten, Leonard Cohen, David Byrne e Laurie Anderson, num espetáculo imperdível de amor à música, à poesia e às saudades do sangue na guelra.