Laura Citarella fala-nos do argentino “Trenque Lauquen”, já nos cinemas.
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Da mesma equipa que produziu “A Flor”, mais de treze horas de cinema, que já vimos em Portugal, chega-nos “Trenque Lanque”, de Laura Citarella, a última produção da argentina El Pampeto Cine, O filme passou por Veneza e San Sebastian e conquistou o grande prémio do Indie Lisboa. Dividido em duas partes, são agora quatro horas de puro cinema. Há um mistério por detrás do desaparecimento de Laura, a personagem central do filme, que vive na localidade que dá o título ao filme. E só há uma forma de o descobrir, indo à sala de cinema. A experiência é única e não necessita de óculos especiais, sala IMAX ou efeitos CGI.
A certa altura do filme pensa-se que Trenque Lauquen é a Twin Peaks da Argentina. Há Laura Palmer e todas as Lauras do seu filme.
É algo que já me disseram várias vezes. Mas não é uma ligação que tenhamos procurado. Trabalhámos com uma localidade, de onde vem a minha família e onde há muitos anos que queria fazer um filme. Tem mais a ver com isso, trabalhar numa pequena localidade, É um acaso que nos chamemos Laura. Os relatos que se passam em pequenas localidades têm todos os seus mistérios, que são semelhantes e universais. Gosto muito de “Twin Peaks”, vi várias vezes. Diria que somos parentes, pelos elementos que nos unem.
Também se sente um pouco o perfume do cinema de Victor Erice. É uma influência?
Percebo. Eu gosto muito dos filmes do Victor Erice. O que se passa com estes filmes da Pampero é que disparam da possibilidade de dialogar apenas com a realidade, com o social, o que se passa muito com o cinema latino-americano. Trabalha-se muito com o imediato, com as problemáticas sociais, com o que se passa à nossa volta. Os nossos filmes preferem um diálogo com o próprio cinema. O motor dos nossos filmes vem mais da tentativa de atualizar problemas do próprio cinema. Nesse sentido, podemos descobrir um monte de outros realizadores neste filme.
Em que filmes pensaram então?
Para além do “A Aventura”, há muitas outras de que nem nos demos conta. Nos nossos filmes, deparamo-nos com problemas do cinema dos anos 20, 30, 40 e 70. O ponto de partida deste filme foi ver como a ficção hoje em dia trabalha o desaparecimento de uma mulher, a fuga de uma mulher, como Antonioni fez. O cinema vai atualizando a resolução de problemas. É por isso que vão aparecendo novos autores e novos estilos.
A estrutura do seu filme tem a ver também com a literatura. O prazer de ver o seu filme assemelha-se muito ao prazer de ler um bom livro.
Sim, é uma experiência muito literária. Instala-se com um tempo que se parece mais com a experiência de ler um romance do que de ver um filme. Foi o que pensaram muitos espetadores. Há uma ligação com as estruturas literárias. Mas o trabalho do cinema é por vezes mais complexo que o da literatura. A literatura, num relato, omitindo informações, pode trabalhar-se o mistério. O problema que temos na imagem é que está lá tudo. O meu desejo foi perceber até que ponto se podia trabalhar com uma imagem ambígua.
Voltando ao nome Laura. As duas argumentistas chamam-se Laura. Há algo de tão pessoal no filme que a personagem central tinha de se chamar Laura?
Este filme é para mim muito pessoal, talvez a mais pessoal que há fiz. Mas não é um filme sobre mim, não é de todo autobiográfico. Aparece a minha família, a terra da minha família, o povo italiano de onde ela vem. E isso não me permitiu a distância para dar outro nome à personagem. O caso mais emblemático é o de Ezequiel, o Chicho, É o meu marido, que não é ator. Nunca representou. Mas a personagem foi tão escrita para ele que parece ter nascido para isso. O filme também documenta aquelas pessoas como elas são. É uma ficção que está escrita, onde não há espaço para a improvisação.
Considerando que se trata apenas de um filme, a sua duração ultrapassa as quatro horas. É um risco, mas é também uma afirmação, de que o cinema pode ser o que se quiser?
Eu sabia que o filme ia ser longo. É muito pessoal. Há uma quantidade de eventos que se sucedem. Mas é a duração e a estrutura a que se chega depois de trabalhar com este material. O material é que define o filme, mesmo quando o queremos moldar, ele resiste. Foi essa a minha grande aprendizagem como realizadora neste filme. Onde nos leva a intuição. Nesse caminho, onde se manifesta esta estrutura tão expansiva e tão cheia de ideias, que os homens estejam mais em destaque na primeira parte e as mulheres na segunda, é algo que se passa de uma forma muito natural.
E o facto de ser apresentado em duas partes?
O que discutimos durante muito tempo foi se seriam dois filmes separados, apresentados em festivais separados, ou apenas um. É complexo, porque pensámos fazer um filme em que uma parte não sobrevivia sem a outra. Depois fizemos a primeira parte e pode ver-se de forma autónoma. Mas há uma relação de dependência.
Como é que foi a reação do público na Argentina?
Foi muito boa. As pessoas não sentiram a duração do filme. A duração é uma consequência da necessidade do relato., de caminhar a esse ritmo. Isso gera uma cumplicidade com os espetadores. Estamos a dar um filme de quatro horas mas não o estamos a torturar. O filme esteve em exibição vários meses em Buenos Aires, numa sala pequena, aos fins de semana. Foi-se gerando um boca a boca muito grande. Esteve seis meses com salas cheias. Para um filme independente, de quatro horas, sem grande publicidade, foi um grande feito.
Para além das necessidades narrativas, há também um gesto, uma afirmação?
Fazer um filme de quatro horas também é um gesto político. Muita gente pergunta porque tem quatro horas. O que está mal é os filmes terem uma duração estipulada. Mas percebemos que há um mercado que regula o cinema.
A própria duração joga a favor do filme. Há também um efeito hipnótico. Pode ser difícil “entrar” no filme, mas depois já não queremos que acabe. O mais difícil é a primeira hora, depois até podia ter seis.
Estou de acordo. Nós no Pampero Cine discutimos muito, vemos os filmes, tentamos detetar as coisas que não funcionam. E esse aspeto foi muito discutido, que o filme demorava muito a começar. Mas depois não percebemos e já estamos lá dentro. Eu penso que sei qual é esse momento. Parece que se anda às voltas, com coisas muito repetitivas mas depois entra-se no filme num outro lugar. Isso foi uma experiência na montagem, que quisemos defender.
A história tende inesperadamente para um certo registo fantástico.
O fantástico é um lugar onde o filme chega a certa altura. É coo se o filme visitasse géneros e formas cinematográficas, mas sem se deter em nenhum deles em concreto. Nós dizemos que é um filme mutante. O filme não tem segmentos, não nos apercebemos onde se dão essas mutações. Quando chegamos ao lugar do fantástico, que é o lugar máximo do silêncio do filme, onde começamos a perder as palavras, aparece-nos algo de misterioso, mas de outro tipo. Aí confirma-se que é um filme sobre um mistério.
A natureza passa a ser uma personagem do filme…
Estamos naquela casa, com aquelas mulheres e uma criatura desconhecida. Quando se abre aquela porta, quebram-se as regras. O que estará por detrás daquela porta? Aquelas personagens têm um destino selvagem. A própria natureza é desse tipo de mistério. A ciência vai até certo ponto, depois a natureza mantem o seu mistério. Apesar de todos os tratados, há muita coisa que não sabemos. O filme cruza assim a ficção, o mistério e a natureza. Como se fossem do mesmo planeta.
Onde é que se posiciona a vossa companhia no quadro do cinema argentino?
Nós fazemos parte do cinema argentino, é difícil responder sem estar de fora. Mas no Pampero Cine, temos o nosso olhar político, sobre a forma como produzimos os nossos filmes e o que pensamos de como os outros fazem os seus filmes. Depois os nossos filmes não se parecem com nenhum outro, o que tem a ver com termos estado sempre num lugar independente. Não para dar o salyo, mas como lugar de permanência.
Como é que funcionam internamente?
Mantemos o nosso condimento familiar. O nosso grupo já tem o conhecimento de como fazer as coisas de uma certa maneira. É um grupo que engloba não só os nossos realizadores como também as nossas famílias, que são também aprendizes da nossa forma de fazer filmes. Como os nossos filhos, que já aparecem nos filmes.
Como é que vê o cinema argentino hoje?
Está um pouco estranho.Há um cinema mainstream, mas as outras estão a precisar de auxílio. Os fundos nacionais não estão a funcionar corretamente. Por isso é um pouco difícil avaloar em que lugar estamos. Mas gosto de dizer que é um lugar muito lateral. Somos como que uma ilha. Mas também não somos os únicos.