Atores e agentes explicam ao JN a segregação que ainda existe no mercado nacional da representação.
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Allex Miranda está numa gravação, em pleno set de filmagens, quando um dos realizadores olha para ele e lança o que parece ser um convite: "Pá, pensei em ti, para um filme que vou fazer". Qual é a história?, perguntou o ator brasileiro com ascendência angolana e indígena. "É a história de um homem negro, que é um violador", ouviu, atónito, o ator de 37 anos. "Pára tudo!", exclamou. "Por que razão pensaste em mim para fazer de violador?"
Allex Miranda iniciou a formação em Vera Cruz, no Brasil, e concluiu-a na Escola Superior de Música e das Artes do Espetáculo (ESMAE), no Porto, licenciatura em interpretação, mestrado em encenação. Trabalha assiduamente em Portugal desde 2008. E recusou o desafio. Recusa sempre, investindo numa atitude pedagógica, que espera que ajude a contrariar um comportamento que planta e alimenta, mesmo que inconscientemente, equívocos no imaginário coletivo.
Não é uma atitude instantânea, é coragem que leva anos. Agora, que já escreveu teses sobre os arquétipos, e que soma vários anos de carreira no teatro, cinema e televisão, em Portugal e no Brasil, já é capaz de o fazer. Mas a discriminação não atenuou. "Sou o único ator negro que trabalhou nos quatro canais de televisão em Portugal, e isso nunca aumentou o meu cachet".
A experiência de Allex Miranda corrobora a conclusão do estudo encomendado pela Convenção Europeia de Teatro, segundo o qual não há diversidade étnica nos teatros europeus e, quando existe, é para acentuar os estereótipos.
Quando era pequena, Jani Zhao, atriz portuguesa de ascendência chinesa, nunca encontrava ninguém parecido com ela na televisão. A primeira vez aconteceu quando viu "Mulan", animação da Disney sobre uma menina que finge ser um homem para cobrir o pai durante uma invasão. "Foi uma esperança", diz ao JN.
A atriz garante que sempre recusou fazer caricaturas sobre a sua etnia. E já perdeu a tolerância para as piadas. "Porque haveria de aceitar um papel em que não digo os rr?", questiona. Até há bem pouco tempo, sempre que era escolhida para desempenhar um papel, ele tinha de estar justificado na ficção, diz. Era uma chinesa a fazer de chinesa.
Aos 28 anos, lembra o primeiro papel em que isso não aconteceu: "O Jorge Andrade, da Mala Voadora, companhia do Porto, convidou-me para fazer de Ofélia". O papel acabaria por não acontecer por outras razões, mas o gesto ficou registado. Recentemente, teve a oportunidade de assumir o protagonismo na série "Sul" (RTP). Foi apenas uma detetive. Sem justificações.
Clandestinidade étnica
Cansada da "exotização" da sua etnia, Maria Gil, atriz, cigana e ativista, diz ter encontrado o seu lugar no Teatro do Oprimido. "Se estão à espera que apareça toda vestida de preto a dançar, eu parto a raça porque sou um pé de chumbo", diz entre gargalhadas. Mas a origem é a sua bandeira. "O meu filho Vicente Gil é o primeiro cigano na Escola Superior de Teatro e Cinema; o meu filho Salvador estuda na Academia Contemporânea do Espetáculo; a minha sobrinha-neta é a primeira menina cigana a estudar lá, também", orgulha-se.
No percurso desta família de artistas, um filme fez a diferença: "Cães que ladram aos pássaros" (2019), de Leonor Teles, premiado em Veneza, protagonizado por Maria, Vicente e Salvador.
Entretanto, Maria Gil já gravou outro filme em que contraria a norma, fez uma médica. Para quem "vive em clandestinidade étnica", a visibilidade tem muito valor. "A história dos ciganos é a história portuguesa. Ao longo de séculos, tentaram apagá-la, não há como negar", nota. Esse ajuste com a história é um dos projetos que tem agora em mãos: vai reescrever a história da Severa, porque os historiadores dizem que não há documentos que provem que a mítica fadista de Lisboa era cigana. "Nada diz que sou cigana no meu cartão de cidadão", atira Maria Gil. Com uma agravante: "há muitos fenótipos" - e essa ignorância também conta para a discriminação inversa: "Há quem nos ache demasiado "brancos", para fazermos de ciganos".
Flávio Hamilton, que trabalha há mais de uma década na companhia portuense Art"Imagem, também tem histórias para contar. "Cheguei a um trabalho, ia recomendado, mas o encenador não me conhecia. Quando cheguei, ele estranhou: "Eh pá!..". O cabo-verdiano não era suficientemente negro para o papel. Um caucasiano moreno ficou com ele.
Hoje, o contrato com uma companhia permite-lhe ser como "Ricardo Darín, o ator argentino que recusa ir para Hollywood fazer de traficante de droga". O problema, torna Allex Miranda, está nos argumentos. Por isso, começou a escrever os próprios guiões, exigindo atores de várias etnias. A sua primeira série, "Casa da Vó", já foi emitida no Brasil.
Revoluções à força
Do lado dos agentes, já não há surpresas. Marta Lima, da Agente a Norte, explica que a abertura étnica existe sobretudo na publicidade internacional. "Ninguém especifica a etnia, mas os escolhidos serão os caucasianos". A exceção está nas séries de época, mas aí tudo é ainda mais estereotipado.
Cecília Mateus, que trabalha em Lisboa, explica que "só pode representar um asiático e um negro", porque "não há mercado para mais". E menciona o que diz ser um facto histórico: o espetáculo "Aurora Negra", vencedor da 2.ª edição da Bolsa Amélia Rey Colaço (2019), representa a primeira vez que três atores negros estiveram no palco de um Teatro Nacional em 174 anos. "É arrepiante", diz. "A televisão devia ter um papel mais educativo".
Todos os atores e agentes ouvidos pelo JN consideram que as quotas são um "mal necessário". As revoluções têm de ser feitas à força, argumentam.
Eurocêntricos, patriarcais e colonialistas
Um estudo da Convenção Europeia de Teatro (ETC) sobre igualdade e diversidade de género nos teatros europeus de 22 países concluiu que não há evolução sobre os estereótipos antigos: o teatro europeu é patriarcal, colonialista e eurocêntrico, garantem os investigadores da Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica. O estudo, divulgado a 8 de março, no Dia Internacional da Mulher, incluiu 11 500 artistas em 650 espetáculos.
Primeiro, foi tida em consideração a diversidade das pessoas que criam as obras artísticas; depois, a diversidade do que é representado nas obras. Os autores do estudo destacam, também, a aparente tendência dos teatros europeus para temerem e evitarem mudanças. Os estereótipos não só ainda definem os papéis e as representações atuais, como são sobretudo concebidos e desempenhados por pessoas de grupos dominantes: homens, caucasianos, deficientes físicos, cis, heterossexuais.
De acordo com os resultados deste estudo, verifica-se uma quase ausência, "digna de nota", de profissionais oriundos de qualquer tipo de minorias, na equipa dos teatros membros da ETC. E isto inclui orientação sexual, etnia, transgénero e pessoas com deficiência.