Geovani Martins: "Nunca houve tanto terror bélico no Brasil como nos nossos dias"
"Via Ápia", romance de estreia do escritor carioca Geovani Martins, denuncia a violência policial nas favelas.
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Há dois anos, o livro de contos "O sol na cabeça" já chamara a atenção para o potencial de Geovani Martins, mas só agora, com a publicação do seu primeiro romance, "Via Ápia", é que o talento deste jovem autor que traz para o interior dos romances a vibração e energia dos bairros degradados do Rio de Janeiro encontra uma expressão plena.
"Via Ápia" é um livro duro, mas carrega um lado sonhador. Conjugar duas dimensões distintas foi o maior desafio?
A tentativa de equilíbrio entre dois estados opostos é algo que busco nos meus livros. Só consigo acreditar em personagens que ainda têm alguma capacidade de sonhar. O romance acabou por ficar mais duro do que tinha planeado, porque a realidade social começou a deteriorar-se quando o escrevia. Foi uma resposta ao que via nos noticiários.
Até o simples ato de sonhar é vedado a quem mora nas favelas?
Uma das violências mais graves que o morador das favelas sofre é o achatamento da perspetiva, o que, aliado à falta de oportunidades, o aprisiona naquele meio. São pessoas que crescem sem nenhuma perspetiva, porque não conhecem outras realidades. Às vezes encontro pessoas com 20 anos que nem sequer sabem que existe uma universidade pública. Por isso, os meus livros são uma tentativa de abertura. Assim como a minha própria trajetória literária: uma das razões que me trouxe até onde estou foi ter sido nutrido pela capacidade de sonhar. Pela minha família, mas também pelos livros e amigos.
No seu livro, a vida na favela da Rocinha muda com a criação de uma unidade policial. Esse combate às drogas pode ter efeitos mais perversos do que se pensa?
A violência no Rio de Janeiro é muito justificada pelo combate às drogas. Há mais de mil pessoas assassinadas todos os anos no Rio e a desculpa que se dá é o combate às drogas, que depende, muito, aliás, do bairro onde se mora, da cor e do sobrenome. Costumo dizer que a maconha já não é proibida no Brasil. O que é proibido é o negro. A mesma Polícia que proibiu as religiões africanas, a capoeira, o samba ou a maconha nas favelas, permite que no resto da cidade se trafique com a maior naturalidade. Além de ser uma desculpa para a violência do Estado, o combate às drogas também é uma lei parcial, que só funciona em certos territórios e com alguns cidadãos.
Que alternativas sugere à instalação de esquadras?
As favelas do Rio de Janeiro têm décadas de história de resistência e o Estado nunca participou dessa construção. Na grande maioria delas, não há saneamento básico, postos de saúde e falta água ou luz. A Rocinha só teve a primeira biblioteca há 10 anos. Imagina um local com 100 mil habitantes e sem nenhuma biblioteca pública. São lugares que não recebem nenhuma intervenção estatal além do poder bélico. O Estado poderia fazer outro tipo de intervenção que envolvesse segurança e saneamento básico, sem a máquina de repressão policial.
Acha que a Polícia brasileira é um Estado dentro do Estado?
A Polícia militar é a mesma do tempo colonial. Pode ter mudado de nome, mas continua com o mesmo intuito: defender a propriedade e os proprietários. Serve para proteger os super-ricos.
A ação do seu romance passa-se há 10 anos. O que mudou até hoje?
Se houve algo que mudou, foi para pior. A Polícia ficou mais violenta, pois passou a encontrar ecos da sua ação na sociedade civil. Os discursos dos bolsonaristas e extrema-direita clamam por essa intervenção policial. A letalidade policial aumentou 1000%. O número de crianças mortas por essas ações subiu 2000%. O Brasil sempre foi um país violento, mas nunca houve tanto terror bélico como nos nossos dias. O meu romance ajuda a entender como a instalação das unidades policiais nas favelas contribuiu para uma mudança na perceção e assimilação da sociedade civil para esse tipo de ação terrorista do Estado. O bolsonarismo sempre teve ideais fascistas e racistas. A grande diferença é que as pessoas já não têm vergonha de mostrar a cara.
Até que ponto ter crescido na Rocinha foi importante na vontade de ser escritor?
Todos os bairros onde cresci - Rocinha, Vidigal, Bambu... - foram importantes na minha formação como ser humano e artista. Foi nesses locais que aprendi a falar, a amar, a ler e até a odiar. Isso muda tudo.
Vê a literatura como uma forma de denúncia?
Para mim, foi uma arma pessoal para romper o ciclo de exploração onde estava inserido. Mas vejo também a literatura como uma arma de disputa de territórios, imagens e significados. Acredito realmente no poder da palavra. Ela ajuda a construir o mundo em que vivemos e a criar novos imaginários.