Simão Cayatte fala-nos da sua estreia na realização, "Vadio", já nas salas
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André, um jovem de 13 anos a viver com o pai no Alentejo, vê-se sozinho quando este desaparece. A vizinha da casa em frente pode ser a sua solução, mas Sandra também tem os seus problemas... Vadio" é a arrasadora, crua mas muito terna estreia na realização de longas-metragens de Simão Cayatte. Já está nos cinemas e é de visão obrigatória para quem goste que, quando vai ao cinema, lhe contem uma história.
Há algo de intimamente pessoal neste filme...
Quando escrevo, tento sempre partir de qualquer coisa que me é pessoal, conscientemente ou não. Neste filme, houve uma tentativa mais consciente de tratar vivências de pessoas que foram próximas e ainda são, durante a crise. Nomeadamente a questão da mãe, como uma figura que carrega o mundo às costas e a tem infelicidade de cometer um erro, coisa que muitas vezes não é permitida às mães.
E quanto ao jovem protagonista?
Há todo um fascínio meu de vivências de infância no Alentejo, não muito prolongadas, no que dizem respeito à seca profunda e aos furos de água, a que assisti e me marcaram bastante. A violência daquela luz e também uma certa ternura. E é o abandono, no fundo o tema do filme, daquela região tão abandonada pelo resto do país, um país também ele bastante abandonado pelos seus parceiros europeus na altura. Era a arena ideal para colocar estas personagens.
Essa relação com a crise que vivemos, é a justificação para ter feito este filme neste momento?
Quando estudei em Nova Iorque já estava a escrever uma história passada durante a crise que estava a acontecer em Portugal. Não fazia sentido nenhum, por estar do outro lado do mundo, deixar de escrever sobre as coisas que me tocaram. Mas ainda eram tentativas um bocadinho deslocadas, ainda não tinha encontrado exatamente aquilo que queria falar.
Como é que essa ideia original evoluiu para a forma que vemos hoje?
Comecei a escrever este guião já em 2015. E achei que fazia sentido fazer um laboratório de guionismo, que me foi muito útil, onde não foram dadas nenhumas respostas, mas foram abertas portas e colocadas perguntas interessantes, e é aí que surge a possibilidade, na minha cabeça, de juntar estas duas personagens.
E este jovem abandonado, o que é que ele representa hoje, é um símbolo de algo na nossa sociedade?
Boa pergunta. Queria, acima de tudo, que fosse um miúdo abandonado. Não queria carregar o filme de simbolismo mas claro que me assaltavam algumas perguntas que tinham a ver com o que estava a acontecer em Portugal, com uma espécie de desencantamento e de queda de figuras de referência. O primeiro-ministro é acusado de corrupção, o nosso principal banqueiro também. Não sei se não estamos numa posição parecida com a do André, de colocarmos a pergunta sobre a nossa identidade.
O Alentejo, com os seus grandes espaços, é propício a ser filmado em Cinemascope. Mas preferiu um formato mais quadrado, como que para encerrar as personagens num espaço claustrofóbico...
Apesar de achar as paisagens do Alentejo tentadoras, assustava-me a tentação de filmá-las assim e desviar-me do que eu achava que era essencial. Esse lado cru do filme, focado nas caras dos personagens, bastante direto, é intencional. A escolha do formato 4x3 parte precisamente de me interessar mais o rosto das personagens e que o que acontece na cara deles do que as paisagens. Eu passei a minha adolescência de câmara na mão e via também o mundo muito através daquele ratio, o 4x3.
É impossível falar do filme sem referir o Rúben Simões. Como é que o encontrou?
Fizemos um casting bastante alargado, com a ajuda da Patrícia Vasconcelos. Durante o processo, entendi rapidamente que tinha de ser um rapaz alentejano. Era impossível de falsear. Fizemos uma busca por várias escolas até encontramos o Rúben Simões. Um rapaz que não tinha experiência em cinema, estava mais dedicado ao futebol. Mas entendi que o podia transformar no André.
Como é que trabalhou com ele?
Eu já tinha tido a experiência de trabalhar com adolescentes, como a Alba Baptista, numa curta-metragem, onde também foi o mesmo tipo de processo e tinha mais ou menos a mesma idade. Gosto muito de trabalhar com adolescentes. Não se pode pedir a um rapaz de 14 anos do Alentejo que nunca fez cinema o mesmo que a um ator com vinte anos de experiência, para não destruir a naturalidade que ele traz para o filme. Ele traz consigo uma energia que não está muito longe da energia da personagem.
O plano final representa uma réstia de esperança para aquelas personagens?
Olhando para trás, sem esse final, o filme seria bastante niilista. Aquelas personagens, que não estão habituadas a ter afetos, uma que não está habituada a receber e outra que não sabe dar, encontram ali, isolados de forma anónima no meio da paisagem, um pequeno porto seguro. O filme, apesar de ser duro, tem essa esperança lá escondida.