Jessica Palud é a realizadora de “Maria”, sobre a rodagem de “O Último Tango em Paris”
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Há uma certa ironia na carreira da realizadora francesa Jessica Palud. Depois de se estrear como estagiária num filme de Bernardo Bertolucci, “Dreamers”, é ela que realiza “Maria”, baseado no livro da prima de Maria Schneider, sobre o trauma que perseguiu a jovem atriz após a famosa cena de “O Último Tango em Paris”, com Marlon Brando. O filme já está nos cinemas, tendo Anamaria Vartolomei e Matt Dillon nos protagonistas.
A sua primeira experiência no cinema foi num filme de Bernardo Bertolucci…
Comecei realmente a minha carreira, aos 19 anos, na rodagem de “Dreamers”, como estagiária. Tinha uma grande admiração pelo trabalho do Bernardo. Ouvi falar muito da rodagem dessa cena de “O Último Tango em Paris” e sempre me perguntei o que realmente se passara. Fui assistente de realização desde muito nova. Comecei aos 23 anos e à minha volta quase só havia homens de 50 ou 60 anos. Vi muitas coisas passarem-se durante as filmagens. Foi algo que atravessou toda a minha carreira.
Quando é que decidiu abordar essa situação do filme do Bertolucci num filme seu?
Li o livro da Vanessa Schneider e fiquei perturbada. É outro olhar, é a prima mais nova a olhar para a prima mais velha. Mas o que mais me tocou foi a Maria Schneider ser uma jovem que, no início dos anos de 1970, foi a primeira a falar. Quando uma mulher sofre de um abuso sexual tem normalmente uma grande dificuldade em falar disso, mas a Maria não teve esse medo. Só que não foi ouvida, e foi isso que me chamou a atenção.
Que trabalho fez para adaptar o livro da Vanessa Schneider?
A adaptação é muito livre. No livro da Vanessa é muito importante o depoimento da Maria Schneider e da família. Para mim era muito importante atravessar o filme com a Maria Schneider, nunca deixar o olhar dela. De fazer a travessia e viver o traumatismo com ela. De estar na pele dela, no seu corpo, de sentir o que ela sentiu.
O livro já foi editado há alguns anos, porquê só agora uma adaptação?
A Vanessa teve várias propostas de adaptação do livro e creio que o retrato íntimo que eu queria fazer a tocou muito. Quando se faz um filme como este, a primeira preocupação é escolher a Maria e deixá-la ser o fio condutor. Foi isso que me interessou.
Que tipo de colaboração e de conversas teve com a Vanessa Schneider?
Falámos muito. Deu-me total confiança. Leu várias versões do guião. Mas não colaborou na escrita, apesar de seguir o que eu fazia. Deixou que o filme fosse meu. Depois, para conhecer a Maria um pouco melhor encontrei muita gente que a conheceu, pessoas da idade dela que viveram muitas coisas com ela.
Teve possibilidade de fazer uma investigação mais profunda sobre o filme do Bertolucci?
Falei com uma pessoa que trabalhou em “O Último Tango em Paris” e que de certa maneira validou a última versão do meu guião. Também recuperei o guião de “O Último Tango em Paris”. Era muito importante lê-lo e saber exatamente o que estava escrito. O que vi foi o guião que esteve na rodagem. Vê-se bem que aquela cena não estava escrita e que foi acrescentada pela anotadora no momento da rodagem. Hoje sei perfeitamente como eles conceberam aquela cena, mas pouco me importa.
Qual é então o seu foco?
O que me interessa é sentir o que a Maria sentiu. Não estou aqui para acusar ou julgar quem quer que seja. O que quero é mostrar o que uma jovem atravessou. Houve muitas atrizes que viram o filme e me disseram que ficaram muito tocadas, o que é algo que me toca particularmente. Faz avançar as coisas. O filme tornou-se um caso de sociedade, sem eu querer. Espero que possa ajudar as novas gerações a poderem dizer não.
De toda a investigação que fez, o que foi mais surpreendente para si?
Ouvi coisas muito fortes sobre a Maria Schneider, sobre a sua maneira de reagir, sobre o vocabulário que utilizava. Não havia muitas coisas escritas sobre ela. Foi ao falar com pessoas que a conheceram que a consegui compreender, de forma a traçar o seu traumatismo. Ouvimos muitas coisas a propósito daquele filme. Não é ainda completamente claro, ouve-se tudo e mais alguma coisa. Era importante para mim ter uma certa verdade. Queria que tudo o que contasse fosse justo.
O filme é também sobre os limites da arte.
É exatamente esse o tema do filme. Até onde é que podemos ir pela arte. Na arte devemos saber parar antes de fazer qualquer coisa que não devamos. Se formos demasiado longe já não é arte. O que se passou naquele momento de “O Último Tango em Paris” já não é arte. Devemos trabalhar com os atores, no sentido de se chegar a uma emoção forte. Eu gosto de alcançar uma certa realidade, de captar o momento certo do ator. Todos queremos isso, mas tem de se trabalhar em cooperação.
E com a Anamaria Vartolomei, como é que foi a relação de trabalho?
Trabalhei ao longo de um ano com a Anamaria. Víamo-nos regularmente, dava-lhe filmes para ver. Fizemos muitos ensaios, trabalhámos emoções diferentes. Ela encontrou vários antigos heroinómanos, para ver o que se pode passar no corpo de alguém que esteve viciado na droga. Dei-lhe tudo para que ela sentisse a personagem. Na rodagem estive sempre ao pé dela. Trair não faz parte da direção de atores. Acredito verdadeiramente que não precisamos disso para trabalhar. Nesse caso, a arte deve parar.
Enquanto artista, cineasta ou como espetadora, é-lhe ainda possível, esquecendo aquela cena, ver “O Último Tango em Paris”?
Já não posso olhar para aquele filme. Conheço a Maria Schneider de cor, tenho-a em mim. Trabalhei tanto à volta dela que me é impossível olhar para esse filme. É verdade que é considerado uma obra-prima do cinema. Se quiser o meu olhar crítico, não sei se será o melhor filme do Bertolucci, prefiro os filmes que tinha feito antes. Mas não consigo olhar para o filme, é impossível.
Hoje em dia, para impedir situações como estas, usa-se muito o que se chama um coordenador de intimidade. Muitos realizadores não gostam, por sentir que lhes retira liberdade. Qual é a sua posição, enquanto realizadora?
Eu tive uma coordenadora de intimidade para a recriação dessa cena. Era importante tê-la. No meu caso, não interferiu absolutamente em nada com a minha realização. Ela teve o acordo dos atores, colocou todas as proteções necessárias para que os atores se sentissem à vontade, para que determinadas partes dos seus corpos não se tocassem. Esse momento da rodagem foi muito particular, estávamos todos bastante emocionados. Houve uma consciência geral no plateau do que acabava de se passar.
Com tantos casos a serem revelados nos últimos tempos no mundo do cinema, como está a situação em França?
Na altura a Maria Schneider tinha 19 anos, era uma criança. É importante que hoje algo assim não volte a acontecer. É importante proteger a nova geração de atrizes e atores. Temos de criar as condições para que possam dizer não. Podemos improvisar durante as filmagens, dizer a um ator ou a uma atriz para fazer algo de diferente, mas é preciso o seu consentimento. Baixar as calças de uma atriz e meter-lhe manteiga no rabo não é normal. Há alguns meses uma cena assim ainda poderia ter acontecido, mas hoje já não.