Premiados internacionalmente, "Mal viver" e "Viver mal" já estrearam nas salas portuguesas. O JN falou com o realizador João Canijo.
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Chegam ao mercado da exibição nacional depois de terem arrebatado vários prémios fora do país. De Berlim - onde conquistou o Urso de Prata - ao Uruguai. Díptico sobre as convulsões de uma família, "Mal viver" e "Viver mal" foram o pretexto ideal para conversarmos com o cineasta João Canijo.
Além dos prémios, do Urso de Prata de Berlim aos recentes no Indie Lisboa, sente-se uma unanimidade rara no cinema português. Esse facto surpreende-o?
Surpreende e não surpreende. Surpreende porque, como diz, é raro. E não surpreende porque eu acho que este é o meu melhor filme.
Foram sempre dois filmes ou o projeto é que evoluiu nesse sentido?
A resposta é parecida. Evoluiu e não evoluiu. Sempre oram dois filmes desde que houvesse a possibilidade do hotel ter clientes. Só que a possibilidade financeira do hotel ter clientes surgiu para aí ano e meio depois de termos começado a trabalhar no primeiro filme. Mas estava tudo preparado, o casting do segundo filme estava mis ou menos feito e as peças do Strindberg também estavam mais ou menos escolhidas.
Como é que a logística da produção se adaptou à rodagem de dois filmes?
Foi tudo filmado de uma vez. A possibilidade financeira do hotel ter clientes possibilitou também mais semanas de rodagem. As últimas semanas foi muito as sequências dos clientes.
Há momentos em "Viver Mal" em que vemos a mesma sequência de "Mal Viver", mas de um outro ângulo. Foram filmadas em simultâneo, com duas câmaras?
Isso acontece sobretudo na cena do jantar. Essa sequência do jantar com os clientes demorou uma semana a ser feita, e tem duas câmaras, uma para um filme, a outra para o outro filme. Há um trabalho de tricô na assistência de realização para sincronizar o que se passava em segundo plano e fora de campo, que se ouvia e que era síncrono.
O segundo filme inspira-se em várias peças de Strindberg, mas é muito Canijo, sobretudo o Canijo depois de "Sangue do Meu Sangue". Onde é que se cruzam esses dois universos?
Provavelmente porque nos últimos dez ou quinze anos comecei a aproximar-me do Bergman, em termos de conteúdos. Não em termos de forma. E o Bergman era muito movido pelo Strindberg. Fui ao Strindberg e estava lá tudo do que eu gosto. É por aí.
O seu cinema já não prescinde, sobretudo nestes filmes corais, de atrizes como a Rita Blanco, a Anabela Moreira ou a Cleia Almeida. Mas aqui há presenças novas...
A Vera Barreto também já faz parte da família há muito tempo. Entrou na única curta-metragem que eu tenho, que fiz para o Temps d"Images em 2006, chamada "Mãe Há Só Uma". E também entra no "Fátima". As novinhas, a Madalena Almeida e a Filipa Areosa, são novas de facto. Precisava de uma miúda que parecesse ter vinte anos ou menos e essas atrizes não as posso conhecer. Fiz umas audições. As que não ficaram para o "Mal Viver" transitaram para o "Viver Mal".
Como é que se integraram no "método Canijo", se assim lhe podemos chamar?
Elas são muito boas, integraram-se rapidamente, com a ajuda das mais crescidas. Mas o processo também não é muito traumatizante. Até gostam sempre muito.
Até que ponto é que está tudo escrito no papel? Há espaço para improvisação?
O improviso é antes. Depois do argumento estar escrito é todo improvisado. E daí é que sai a versão final. Na rodagem não há improviso. Está tudo escrito, mas não é uma escrita rígida. Elas podem dizer as mesmas coisas de outra maneira, conforme lhes apetecer. Não são obrigadas a respeitar as vírgulas. E a implicação delas é total. As palavras que lá estão, depois de manipuladas e selecionadas por mim são as palavras que elas disseram nos improvisos finais.
É uma abordagem semelhante à do teatro, onde também tem alguma experiência?
A minha experiência no teatro foi para aperfeiçoar a minha experiência no cinema. Não tenho pretensão nenhuma de ser encenador. Mas sim, é um bocado como se fossem ensaios para uma peça de teatro. E a família, o grupo, é como se fosse uma companhia de teatro. A Rita, a Anabela, a Cleia, a Vera, são sempre as mesmas e são como se fossem uma companhia de teatro. A Beatriz Batarda também já tinha entrado, não é nova. E a Leonor Silveira foi a primeira vez que consegui arranjar um papel para ela, mas eu conheço-a desde que tinha 17 anos, com os filmes do Oliveira.
A fotografia da Leonor Teles é como se fosse outra ds personagens do filme...
A fotografia da Leonor Teles e o hotel. A Leonor Teles deu-me uma coisa que eu não tinha. Deu-me uma exigência em relação a mim próprio que eu não tinha. Foi uma verdadeira colaboração e uma discussão das coisas como eu nunca tinha tido. O que o filme é deve-se muito a ela.
Ela também ser realizadora ajudou?
Isso ajudou também muito. Porque as nossas discussões, as nossas conversas não eram propriamente de realizador para diretor de fotografia, eram de pessoa para pessoa. Tínhamos praticamente a mesma linguagem, isso foi muito útil. Sendo ela muitíssimo mis nova do que eu, tem a idade do meu filho, as nossas referências são as mesmas. Isso facilitou muito e ela fez um extraordinário trabalho. Eu costumo dizer nas apresentações, quando estou mais comovido, que foi a minha companheira neste filme.
Estes filmes são uma visão pessimista ou realista das relações familiares?
Digamos que fatalista. Pelo menos é a minha experiência, a minha vida, eu não conheço famílias funcionais. As relações familiares são, por definição, muito violentas. Ultrapassa a intimidade, por causa da promiscuidade em que as famílias vivem. Não acho que seja pessimista, é fatalista, é assim. Mas é a minha opinião, eu não tenho verdade. Não há verdade, só há realidade. A verdade é uma interpretação da realidade, que cada um faz.
Nos últimos anos tem-se dedicado ao universo feminino. Já conseguiu desvendar esse mistério feminino de que tanto se fala?
Não senhor, mas insisto. Mas também não tenho pretensão nenhuma de penetrar no mistério. O que me interessa é usá-las, para me darem qualquer coisa de sincero e verdadeiro da parte delas. E isso acho que as mulheres conseguem mais do que os homens. E portanto insisto. Mas não é nos últimos, é desde sempre.
Até que ponto a pandemia afetou a produção, mas também o espírito das atrizes e da equipa?
Afetou imenso, mas para o bem. Porque nós estávamos confinados num hotel. O hotel tem aquele pátio, ms íamos estar confinados de qualquer maneira. Confinados e a trabalhar, com uma enorme concentração e dedicação ao filme, porque não havia distrações possíveis. Afetou muito e foi muito bom. Espero que no próximo também haja uma pandemia.
Por falar em próximo, a exigência e a responsabilidade aumentaram...
Em termos de conteúdo, já sei para onde vou, em termos formais ainda tenho de descobrir. Mas já tenho umas ideias. Ainda estou a pensar e a escrever sobre isso. Eu não considero uma responsabilidade. Sempre considerei que se o último filme não fosse melhor que o anterior eu não estava aqui a fazer nada. Isso mantém-se como se manteve sempre.