João Miller Guerra fala do novo filme que fez com Filipa Reis, “Légua”, um retrato das várias gerações de uma família nortenha que já pode ser visto nas salas.
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Três gerações de mulheres, numa casa do norte do país, de que a mais velha se ocupa na ausência dos proprietários. O tempo que passa, a iminência da morte, as mudanças sociais e geracionais. Filipa Reis e João Miller Guerra voltam à ficção com “Légua”, que teve estreia mundial na Quinzena dos Cineastas, em Cannes. O filme estreia agora em sala e João Miller Guerra esteve a falar com o JN.
Há alguma razão mais pessoal para o filme se passar na localidade que dá o nome ao filme?
A casa do filme é uma casa de família, que tem estado na minha família há várias gerações. Começou por ser esse o interesse inicial. Eu e a Filipa, na relação que temos há já vários anos, gostávamos de estar lá, sentíamo-nos bem, queríamos passar lá mais tempo e foi essa vontade que espoletou o interesse pela região e a ideia de fazer um filme, embora não soubéssemos exatamente o quê.
Como é que da ideia se passou para a história do filme?
Passou-se um episódio real que foi o gatilho, o ponto de partida para esta história. A senhora que toda a vida tomou conta da casa adoeceu e foi outra senhora que costuma ajudar que a acolheu na sua própria casa. Foi esse gesto altruísta e a profunda amizade entre as duas que nos inspirou a partir para a ficção.
Como local de ficção está muito longe do Cabo Verde de “Djon África”…
Estamos, mas ao mesmo tempo não estamos. Há uma certa razão para continuarmos a fazer sempre o mesmo filme. Tem a ver com o meu pai ter morrido há dez anos. A personagem do “Djon África” é um rapaz que não conhece o pai. E eu estava de luto pela morte do meu pai e estava ao lado de um rapaz que não conhecia o pai.
Há então uma relação muito forte entre “Djon África” e “Légua”…
Aqui foi muito o momento da própria morte. O meu pai morreu de um cancro no pâncreas numa semana. Quando entrou no hospital já não saiu. Nessa semana passou por todos os estados da doença, até partir. Também houve um momento com os cuidados paliativos. Este gesto deste segundo filme de ficção, o “Légua”, continua a ser uma forma de sobreviver à perda do meu pai. Nesse sentido os filmes são sobre a transformação, a mudança de ciclo.
O Miguel e a Ana são quase almas gémeas…
O Miguel do “Djon África” vai à procura do pai e transforma-se ele próprio no pai, não o encontrando. A Ana, ao acompanhar a morte da Emília ela própria se redescobre e não segue o que era suposto, emigrar e seguir com o marido e acaba nesse gesto emancipativo por se encontrar com aquela terra e com a natureza. E aperceber-se que é ali que pertence.
Depois de uma carreira brilhante no documentário, recheada de prémios nacionais e internacionais, de onde veio esse desejo de ficção?
Foi uma coisa relativamente natural. Já no “Djon África” pegámos numa personagem real e trabalhámos com atores não profissionais, querendo pôr ali uma certa dose de ficção. Neste filme andávamos à procura de uma desculpa para passar algum tempo ali e fomos passando para as personagens coisas que nós queremos dizer, que sentimos ou experienciámos. Formalmente, mesmo quando trabalhávamos no documentário os filmes já tinham essa tendência para estarem numa linguagem menos de documentário e mais de ficção. Nesse sentido foi uma transição pacífica.
Podemos também dizer que, no seu dispositivo, há ainda algum de documental nestas vossas ficções.
Há. O “Djon África” já tinha um guião escrito, com cenas que tinham todas a sua intenção. Para efeitos de concurso tinha até diálogos, apesar de para nós serem mais indicativos. O “Légua” tem um guião, um trabalho de mais de três anos, com a Sara Morais e o José Filipe Costa e depois com a participação de uma guionista brasileira. Interessava-nos perceber se o filme saia do particular e ia para o universal.
O “Légua” é o retrato de três gerações de mulheres. Na escrita do argumento, houve equidade de género na abordagem dessas personagens?
Houve. Por coincidência foram duas mulheres e dois homens a escrever o guião, com a colaboração depois de uma guionista brasileira. Para mim havia esta ligação à casa, mas a Filipa também está há muitos anos comigo e conhece bem o território, a casa, a família. Gostamos os dois de estar aqui. E a Filipa queria muito contar uma história de três gerações de mulheres e de mulheres apoderadas, com capacidade de escolha.
No filme, colocam atrizes profissionais ao lado de amadoras e o “casamento” resulta. Como é que trabalharam esse aspeto do filme?
Andávamos às voltas com essa ideia. Fizemos castings de pessoas na região, porque gostávamos muito de manter o sotaque. Para a Emília encontrámos a Fátima Soares na universidade da terceira idade a estudar teatro. Para a personagem da Ana, que tem de fazer tudo e mais alguma coisa, tinha de ser uma atriz profissional. Gostámos imenso da Carla Maciel, que tinha também a experiência pessoal de ter cuidado da mãe.
A Fátima Soares carrega grande parte do filme às costas. Como é que a acompanharam ao longo da rodagem?
Foi uma descoberta . Ela foi de uma generosidade avassaladora. É inesquecível para nós o que se passou com ela. Houve uma outra coincidência, a Fátima tinha perdido uma irmã mais nova, que por acaso se chamava Emília. A Fátima disse-nos que ia fazer uma homenagem à irmã. Tivemos também um preparador de elenco, que foi fundamental, e fizemos uma residência na casa, com as duas, a Fátima e a Carla. Vimos a relação entre as duas nascer, foi extraordinário.
O “Légua” é um filme sobre um Portugal que se perde e se deseja preservar?
Não, mas é um filme sobre um Portugal que se transforma. Não trabalhamos tanto a ideia de perda, mas mais a ideia de ciclo. As coisas seguem uma estrutura qualquer de vida, morte e renovação. Trabalhámos muito a ideia das estações do ano, acompanhámos as transformações da natureza, as próprias transformações do corpo humano através destas três gerações. As casas vão-se vendendo mas também vão sendo compradas e recuperadas.
Como é que viveram a seleção para a Quinzena de Cannes?
Foi uma enorme surpresa e uma grande alegria. Para um filme português desta dimensão não havia sítio melhor para começar. Levámos a equipa toda e a equipa fixa do escritório que trabalha todos os dias em Lisboa, que fez o “Légua” e faz os outros. Fizemos uma festa muito grande, foi muito bonito.
Como é que foram as reações em Cannes?
Foram muito boas. Sentimos logo no momento da seleção que o filme estava a ser bem defendido. Não foi uma escolha imediata mas, como eu costumo dizer, esteve no ringue, deu luta durante imenso tempo e no fim lá ganhou os rounds todos. Sentimo-nos muito acarinhados, o filme foi muito bem recebido pela crítica, tivemos ótimas críticas no "Le Monde" e no "Libération". Espero que agora também corra bem em Portugal e que as pessoas vão à sala ver o filme, que trata de um assunto universal. Todos chegamos a uma altura em que temos de enfrentar a nossa própria morte.