Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Viseu explica ao JN por que razão renuncia ao cargo a seis meses de distância do fim do mandato
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Há quem aposte que Jorge Sobrado será ministro da Cultura, um dia. O vereador da Cultura de Viseu, que deixará de o ser a partir de dia 15 deste mês, garante que nunca ouviu "falar de tal" e acrescenta que no início do mandato ao qual agora renuncia teve um "susto": "Fui acometido imediatamente de uma sensação de culpa quando me li na imprensa como "autarca"".
Di-lo a rir, mas lamenta a "caricatura" que hoje se faz do poder local. E defende a "urgência de reabilitar a dignidade dessas funções".
Aos 44 anos, Jorge Sobrado ajudou a colocar Viseu no mapa de um certo cosmopolitismo, mas não esclarece se vai continuar ligado à cultura ou à política. Deixa escapar apenas o receio de que o seu trabalho não resista à erosão do tempo.
A sua demissão é uma surpresa. Por que razão renunciou, a meio ano de distância do fim do mandato, às funções de vereador da Cultura da Câmara de Viseu?
A avaliação que faço é que se cumpriu um ciclo sobre o meu desempenho e as condições em que o exerci. Nos últimos anos, a Cultura em Viseu saiu do anonimato, ganhou corpo, intensidade e diversidade, tanto na programação, como no plano da criação. Mesmo no contexto adverso da pandemia, a Cultura não ficou para trás. Naturalmente, a ambição cresceu. Acredito que os pilares são sólidos, mas que reclamam uma renovação de compromissos. Não basta gerir o que já realizámos ou alcançámos.
Dá a sua missão como cumprida, é isso?
Uma missão destas não termina, mas o meu ciclo nesta missão está cumprido.
Chegou a Viseu como adjunto de Almeida Henriques, sai incompatibilizado com o presidente da Câmara? Ou desapontado?
Sou muito grato ao presidente Almeida Henriques, de quem sou amigo. Devo-lhe os melhores anos da minha vida profissional e cívica. Partilhamos muitos pontos de vista. Quero acreditar que o ajudei a construir parte do que deixará em Viseu, que é muito.
Na declaração que publicou na sua página pessoal de Facebook afirma que cumprirá o mandato como vereador, mas já sem os pelouros da Cultura, Património, Turismo e Marketing Territorial. Reconhece que esta decisão contribui para a ideia de que sai, de alguma forma, vencido ou isolado?
Bem pelo contrário. O padrão nesses casos é uma saída "à francesa", "por razões pessoais" e sem honrar os compromissos de eleito com os eleitores até ao fim. Só não o farei se as minhas futuras responsabilidades profissionais o impedirem. Não devo ser
juiz em causa própria, mas as manifestações de solidariedade que recebi de tantas instituições e cidadãos deixam-me tudo menos isolado. E são eloquentes quanto ao reconhecimento de um percurso e de uma atitude.
Também diz que vai continuar a viver em Viseu. Apaixonou-se pela cidade?
Honestamente, sem uma genuína paixão não teria chegado até aqui [risos].
Diz ainda, nessa extensa declaração, que a Feira de São Mateus foi o maior desafio da sua vida. Mas, visto de fora, o património parece ter sido a sua prioridade. É por considerar que não há turismo sem património ou porque, independentemente do turismo, havia ali uma herança histórica que era preciso de desbravar e potenciar?
Nos últimos anos, devorei a história e a alma de Viseu. Formei equipas, escutei ativamente, li muito, trabalhei em dobro, pedi ajuda. Às vezes faz falta humildade na política. O património era uma espécie de Bela Adormecida da cidade: anónima, sem brilho e sem uma política de conhecimento e valorização. A criação de um serviço de arqueologia - o Polo Arqueológico de Viseu, munido da força de um regulamento municipal e de uma delegação de competências do Estado - é um alicerce que faltava de forma gritante. Mas não só. O Museu de História da Cidade, por exemplo, era uma ambição encravada há mais de 40 anos. Uma cidade histórica e patrimonial tem de ser mais do que um slogan. Mas a Feira de São Mateus é a menina dos olhos de Viseu, a sua Xerazade. De todos os patrimónios, era aquele cuja decadência comprometia o futuro e que mais ousadia e coragem exigiu. Foi necessário resolver-lhe um divórcio afetivo, de identidade e modernidade. A sua revitalização e reposicionamento são uma conquista que me faz cometer o pecado do orgulho.
A história tem-nos ensinado que todos os legados curtos são frágeis. Acredita mesmo que o que está feito "é suficientemente sólido para sofrer qualquer recuo"?
É a própria comunidade que já não quer viver sem um pulmão cultural e sem uma política de património que se veja. Há hoje uma consciência mais esclarecida. É eloquente, por exemplo, que o nosso programa para o património azulejar tenha nascido numa escola secundária (Emídio Navarro). A mola de uma série de recuperações e até da classificação do icónico painel de azulejos do Rossio surge de um projeto partilhado. Há pilares novos que dificilmente recuam porque existem equipas, programas, contratos. Dou dois exemplos. Com a incorporação do espólio e coleção do pintor José Mouga na Quinta da Cruz, ontem contratualizada, damos o verdadeiro passo para tornar irreversível e programático o Centro de Arte Contemporânea da cidade. Segundo. Viseu não dispunha de um único património artesanal classificado e certificado. Hoje, temos três projetos em curso, um deles na fase final. Não me passa pela cabeça que o Executivo abandone estes progressos.
Do ponto de vista municipal, a Cultura não corre o risco de estar a ser usada apenas como veículo atrator de turistas? Em Viseu, não haverá memória de ter havido um investimento tão grande naquilo que hoje surge designado como marketing territorial.
A Cultura, tal como o património, é um fim em si mesmo. Deve existir para gerar sentidos de pertença e formar uma consciência. Merece, portanto, reserva o critério das "dormidas" para financiar projetos culturais. Mas julgo que é chegada também a hora de absolver o turismo e o marketing territorial, que nada tem que ver com "propaganda", e que só agora é uma aposta em Viseu. Além do ativo económico que representam, os turistas e visitantes acrescentam responsabilidade e cosmopolitismo num território. Mesclam-no e abrem-no. O turismo em Viseu nunca deixou de ser, como agora se diz, sustentável.
O programa municipal "Viseu Cultura" investiu, só neste mandato, mais de três milhões de euros em projetos artísticos e culturais independentes. É uma forma de se substituir ao poder central? Que balizas devem existir entre o Ministério da Cultura e uma vereação municipal, para que se crie um tecido sustentado e sustentável mas não redundante?
Não é de agora, mas faz falta uma arquitetura nos diferentes níveis de intervenção na Cultura. Há redundâncias positivas - em projetos estruturantes, em que Estado Central e Poder Local se devem complementar. E há redundâncias que se anulam - em projetos emergentes ou de microescala. O que senti enquanto responsável político é o vazio de um diálogo estruturado. No plano local, serei suspeito, mas entendo que o "Viseu Cultura" é um modelo interessante. Primeiro, porque combate a "municipalização" da cultura (termo tão mal empregue) e fomenta a autonomia artística. Substitui a típica "política de gosto" e uma decisão casuística e irregular de financiamento por um modelo de contratualização com sentido estratégico, regular e previsível. Segundo, porque tem uma abordagem integrada: da programação à criação, da animação de património à revitalização da cultura tradicional, esse parente frequentemente pobre e esquecido da Cultura.
Diria que o Teatro Viriato, que continua cheio de pontas soltas, foi o seu dossier menos bem-sucedido?
Um trabalho dá sempre origem a muito mais trabalho. O facto de a Cultura ser um tema em Viseu é, por si só, um avanço. O Teatro Viriato é um pilar fundamental da Cultura de Viseu e é gerido com absoluta autonomia artística. A nova diretora [Patrícia Portela] iniciou funções com a emergência da pandemia e não tem tido um contexto fácil. Não tenho a seu respeito razões de queixa. O atual enquadramento legal - subsequente ao fim do inovador e inteligente modelo à época do ministro Carrilho - e a aprovação de um novo normativo para o financiamento da rede de teatros abrem a porta a uma refundação do projeto, até pelo previsível e salutar imperativo de um concurso público ao fim de muitos anos de gestão privada de um equipamento municipal. Quanto a mim, essa refundação deverá passar por estabelecer as condições de um diálogo solidário e estratégico com o município, mas também por definir uma visão de médio prazo na relação com a comunidade artística local e o lugar da Companhia de Dança Paulo Ribeiro.
Que relação criou, nestes anos, com a comunidade local, artística mas não só?
De uma forma geral, gerou-se um ambiente colaborativo entre estruturas que é muito inspirador. Os museus municipais têm aberto as suas portas, e emprestado a sua capacidade de produção, a novas dinâmicas; um conjunto de artistas associou-se a
historiadores para projetos de criação inspirados no património; outros desenvolvem projetos em aldeias e com grupos de etnografia e folclore; a incubadora de "indústrias criativas" no centro histórico está cheia. A única perplexidade que me assalta é a
interrupção da cooperação do Museu Nacional da cidade com o município e muitas das estruturas culturais locais, cooperação alimentada pelos anteriores diretores, Agostinho Ribeiro e Paula Cardoso. Não se justifica.
Esta travagem a fundo ditada pela pandemia fará o quê a cidades de média dimensão como Viseu?
Eu queria evitar a todo o custo aquela palavra tão estafada que é "resiliência". Creio que houve mesmo uma cidade italiana que a tentou proibir [risos]. Acredito que cidades como Viseu, de escala humana e com uma melhor articulação cidade-campo, podem fazer uma retoma mais rápida do que as grandes cidades. No plano turístico, faremos valer o nosso argumento histórico de "cidade-jardim". No plano cultural, o município não deixou de lançar tudo o que está ao seu alcance. Não só não atrasámos a implementação do programa "VIseu Cultura" para 2021, como a acelerámos e adicionámos um subprograma direcionado para este confinamento e o momento que lhe seguirá.
Há muito que se fala da possibilidade de vir a ser ministro da Cultura. É essa porta que se abre agora?
[Risos.] Temos seguramente fontes distintas. É a primeira vez que ouço falar de tal.
Mas continuará ligado à Cultura? E à política?
O futuro está em definição. Para já, regresso à minha casa de partida, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N).