Com uma longa obra a que acaba de acrescentar o volume "Então assim falo", o poeta José Emílio-Nelson afirma em entrevista que "continua a recusar maneiras únicas de escrita".
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Desde que se estreou na publicação, no final da década de 1970, o autor natural de Espinho tem vindo a construir um percurso literário assente na convicção de que a arte não deve renunciar à luta contra o que diz ser "a propagação pontifical de captura de aparências, ilusões".
Da "rasura do efémero" à recusa dos modelos mais óbvios, o poeta assume a vontade continuada de fazer da escrita "a experiência dos limites", sem que isso seja necessariamente sinónimo de provocação.
"Um poema desperta, estimula, induz ao diálogo", escreve.
"Nada escrevo que não seja rasgado pelo escalpelo", como sintetiza no livro "Então assim falo". A poesia é um exercício de corte ou de costura?
Entendo a poesia, poema por palavras, como um exercício corruptor de uma linguagem sem alcance. Assumo ser impiedoso contra a propagação pontifical de captura de aparências, ilusões, a que a arte não deve renunciar.
O emprego de "escalpelo" no verso que cita, expõe uma hipótese de manifestar esse meu propósito de rasgar, de dissecar as ideias feitas do leitor que recebe o poema com passividade. E digo hipótese porque o leitor tem liberdade de acabamento do poema, de refazer a sua interpretação, permitindo que o poema cresça com os impossíveis, se valorize, no final das leituras.
Refuto o poema que não apele à inteligência do leitor, à sua experiência de vida, à sensibilidade, ao sentimento, não ao sentimentalismo, e rejeito que se expresse numa linguagem superficial de significado fixo, se quiser, num jogo apaziguador, adocicado, que não obrigue ao questionamento, que dispensa o leitor da incomodidade do confronto com outra suposição diferente do que é a sua verdade.
As mentiras de que fala nesse mesmo poema, mesmo que "soterradas" ou "sequiosas", inscrevem-se na lógica poética de ocultar para melhor revelar?
Há sempre um significado a recuperar em cada verso sedento da intuição do leitor e não de verdades empíricas que, como lembrava Bataille, são da ciência e da utilidade.
Cito o verso completo: Nada escrevo, por certo que sim, que não seja mentira soterrada contra mentira sequiosa: entendo que a ilegibilidade da ´mentira soterrada", a obscuridade imediata do poema, responde à "mentira sequiosa" que esquece que a linguagem literária é plurissignificativa. Claro que temos todos presente o fingimento pessoano, mas não tive consciência que pretendia obedecer a uma lógica poética em jogo de adivinha entre a falsidade e a veracidade. O poema, como o entendo, contém algo de enigmático, o que o torna impulsionador da interrogação. Um poema desperta, estimula, induz ao diálogo.
A "Polifonia" que dá título ao seu primeiro livro, em 1979, continua a representar uma espécie de premissa a que tem procurado manter-se fiel?
"Polifonia", compilou poemas com formas de escrever, ou vozes, sem a servidão que obriga a executar em uníssono. Eu diria desse livro híbrido que coleciona poemas de retorno e deformação do Barroco e do Êxtreme que se ecoaram em tudo o que escrevi posteriormente, com pontos de encontro na escatologia de dual significação, a utópica e a fisiológica. Desde "Polifonia", recusei maneiras únicas de escrita. Mas ambiciono regressar, em cada verso que escreva, à "música bucal" libidinosa, infantil, a que, segundo Seamus Heaney, os poetas regressam, pelo emocional arrebatamento pelas palavras.
A provocação que encontramos em muitos dos seus poemas vem também acompanhada por uma sofisticação, como assinala Luís Adriano Carlos. Ao contrário do que se pensa, estas características estão longe de ser excludentes?
Cada poema, na sua trama fabuladora, concebe-se numa resposta formal de confluência diversa. Permita-me o pretensiosismo de dizer que se o meu estilo causa alguma estranheza pelo emprego de sofisticação em conteúdo considerado da desmesura, incómodo até, será porque não escrevo poesia padronizada para ser facilmente consumida, obedecendo ao que garante benevolência crítica e o aplauso generalizado. Talvez se entenda o que escrevo como implosão de ideias feitas, talvez se possa classificar de provocação, mas nunca pretendi escrever deliberadamente conteúdos provocantes. Mesmo que se reformulasse a pergunta em termos vulgarizados no ensaísmo e os classificasse de conteúdos transgressores, responderia da mesma maneira. Ainda assim, tem de admitir-se a existência de leitores que permanecem numa letargia, campânula ideológica que restringe a sua adesão. Rejeitam, à partida, o que põe em causa o gosto condicionado pelas suas convicções, os seus dogmas. Mas eu não excluo nenhum tipo de registo como matéria do poema, quer seja ao nível semântico, quer seja ao nível fónico. Em última análise, a afirmação de um poema está em ser capaz de fazer com que o leitor volte a lê-lo e reflita.
E, como nos ensina Jean Cohen, a linguagem poética envolve um desvio, pois admite a não aplicação do código usual da língua.
A ideia de diálogo com outras eras, através de alguns dos seus principais artífices, está muito presente na sua obra. A História, incluindo a da literatura, é sobretudo feita de continuidades ou de ruturas?
Entendo a História da Literatura como um palimpsesto, o manuscrito em pergaminho que depois de ser raspado permitia que nele se voltasse a escrever. Há rasura do efémero, há recusa do trivial, do que prescreve. Kristeva fala da absorção e transformação que gera de um texto outro texto, do texto como sendo um mosaico de citações. O que ambiciono mais do que continuar as formas tradicionais obsoletas, é ressignificar, no sentido em que entendo a escrita como a entendia e sintetizou Philippe Sollers, a escrita como a experiência dos limites.
Tem distribuído, ao longo dos anos, muitos dos seus livros por uma restrita comunidade de leitores. Vê a poesia como uma oferenda na verdadeira aceção do termo?
A arte é modelo vivo da liberdade humana, para responder com palavras de Terry Eagleton. A poesia situa-se nesse campo de oferenda e raramente atinge largas comunidades de leitores.
O que pode, afinal, fazer um poema perante o fragor e o estrépito do mundo?
O poema é linguagem a que Sartre atribui, como única tarefa, restituir o mundo. Virado para dentro de si mesmo, em trabalho indistinto, com a perceção de um contexto social que não ignora, mas que não o confina, faz mais pela transformação do mundo do que faria se representasse corretamente as condições sociais sem se projetar, como linguagem, mais do que dela se entende de imediato. A linguagem contém um vasto mundo de impossibilidade, de indeterminação para atingir a inteligibilidade sem que esteja garantida, pois destruiria o texto, não lhe daria provir, como nos ensina Jacques Derrida.