Grupo de James Murphy fechou palco principal na segunda noite do Meo Kalorama em apoteose. Antes houve outras exaltações, com The Kills ou Postal Service.
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Com os LCD Soundsystem, nada é banal, comum ou "mainstream"; nunca foi, nem quando quase inadvertidamente chegaram às massas, ao reconhecimento e consenso. Tal parece ter a ver com a postura de James Murphy, com o seu ADN: afinal, quando formou o projeto, em 2002, já 32 anos vividos, tinha deixado para trás um passado “de falhanços”, garantiu o próprio em entrevistas. O “falhanço”, o quer que tal fosse para ele, parece ter terminado ali, pelo menos na apreciação mais simplista do conceito: foi logo substituído pelo sucesso, aquele alcançado com o disco homónimo de estreia (2002), e depois com “Sound of silver” (2007), “This is happening” (2010) e “American dream”, já depois da paragem de 2011 e regresso da banda.
Tudo para dizer que, numa altura em que muitas vezes, ver a setlist de um concerto de dada digressão de uma qualquer banda, é normalmente ver a setlist de todos os espetáculos, isso não acontece com os LCD Soundsystem.
São old school, reinventam parte da lista a cada noite, há sempre surpresas – às vezes mais, outras menos, mas o certo é que têm boas músicas em quantidade suficiente para se darem a esse luxo. O problema? Nunca sabemos o que esperar, e o que ficará de fora.
Às vezes é o orelhudo “Daft punk is playing at my house” que não passa no corte final; outras o agregador “All my friends”, ou ainda o assombroso “Oh baby” de “American dream”, seis minutos de eletrónica cinemática, hipnótica, combinada num rasgo de perfeição daqueles que resistirão ao teste do tempo. Qual a preterida, a deixada para trás?
No Parque da Bela Vista, o grupo entrou à meia noite, já muita música vista e vivida, muitos quilómetros percorridos pelo público no recinto, níveis de energia a baixar e a precisar de carregador; nada que Murphy não resolvesse, em minutos.
Ao som de “Real good time together”, Lou Reed a proclamar como a próxima hora e meia seria bem passada, James Murphy e banda chegam a palco para um primeiro cumprimento do fundador e vocalista, um simples “olá a todos”. Entra “Us vs them”, entra também o efeito de uma gigante bola de espelhos a iluminar toda a plateia e estão lançadas as cartas da festa.
Murphy mal se vê durante parte do tempo, todo ele é microfone na cara, cabelo desgrenhado, queixo para cima, olhos fechados, é o jeito dele e resulta; mas vai conversando, agradecendo e mostrando lembrar-se das anteriores passagens por Portugal, logo desde o início.
Ainda antes de “You wanted a hit”, diz mesmo como é bom estar de volta, e o concerto segue depois em crescendo, com “Tribulations”, “Tonight” e “Someone great”.
Para grande parte do muito público, é uma hora e meia que, apesar do cansaço, passa a voar: a verdade é que os LCD estão na estrada este ano, mas há muito que não passavam por cá, desde 2018, com três concertos no Coliseu de Lisboa – e antes disso terminaram, chegando a dar um formal e grandioso concerto de despedida em Nova Iorque, em 2011.
No palco do Kalorama, Murphy não esquece as muitas passagens por Portugal e diz estar “muito grato” por estar de volta, lembrando como, em mais de 20 anos de carreira, o nosso público sempre os acolheu, desde “um primeiro concerto no Lux”, recorda com precisão.
Entre “Losing my edge”, “new body rhumba” e “Dance yrself clean”, o público não esmorece nem parece querer arredar pé. Há focos de autênticos fás a absorver e a viver cada momento, mas mesmo nos restantes não sobra espaço para aborrecimento. LCD Soundsystem é eletrónica para quem não gosta de eletrónica, é “art-rock”. Seja o que lhe chamem, é envolvente como poucos grupos ou sonoridades.
Logo, o vocalista anuncia que faltam apenas duas músicas: primeiro “New York, I love you but you're bringing me down” e depois “All my friends”, tema que parece ter nascido para encontros e festivais, para representar o espírito de festa, comunidade e amizade que eles também encerram. “Se eu pudesse ver todos os meus amigos esta noite”, canta Murphy, no final. Apesar de uma tentativa de encore por parte do público, não houve encore, nem “Daft punk..” como na véspera no novo Kalorama Madrid, ou o “Oh, baby”, de há uma semana em Londres, a tal setlist em rotação, mas eles que voltem, porque houve, como há sempre, festa, música, dança, até expiação.
O futuro começa lento
Outro ponto alto do segundo dia do Meo Kalorama foi o regresso a Portugal dos The Kills, agora para apresentar o novo álbum, “God games”.
Antes de LCD Soundsytem e já depois da agradável surpresa da estreia em Lisboa de Olívia Dean no palco principal, o palco San Miguel encheu para acolher o duo que nunca parece ficar aquém: é sempre rock n’ roll puro, guitarras sujas, cabelos no ar, um charme característico.
Começando com o já longínquo “Kissy kissy”, Alison Mosshart e Jamie Hince levaram-nos novamente numa viagem por blues-punk, garagem e eletro-pop. No entanto, do que se percebeu, houve um caso de dois concertos, ou perceções diferentes, consoante o local: aquele de quem, perante um palco muito cheio, viu atrás, no meio das conversas e aparentemente impossível passagem; e o de quem viu mais perto do palco, totalmente divergente.
À frente, a energia foi palpável; com Mosshart e Hince a lembrarem ser este o último concerto da digressão, a dupla deu tudo, misturou o novo e velho, “Love and tenderness” e “Baby says”, ou “New York” e o, tão melhor ao vivo “LA Hex”, todos muito bem acolhidos.
Hince elogiava a multidão e dizia “adoro-vos, adoro-vos, adoro-vos”, Mosshart acenava e bebia cerveja do público, sempre a eterna cumplicidade entre os dois, numa das parcerias mais bonitas do rock – e que começou com Mosshart a subir ao sótão do seu prédio para ver quem estava a tocar aquela guitarra como nunca tinha ouvido, como contou a própria há meses, em entrevista ao JN.
Com a também guitarrista, uma "frontwoman" que claramente nasceu para ser estrela de rock, já a mandar beijos à multidão, o concerto terminou em catarse: “My girls my girls”, “Doing It to death” e, claro, “Future starts slow”.
Logo depois e no palco Meo entraram os Jungle, e entraram com tudo – que é como quem diz com “Busy earnin” o seu primeiro single e até hoje talvez o mais reconhecível, festivo, e mais agregador das características do duo. Não que fosse preciso o chamariz, já que muitos já os aguardavam no recinto, e a eles ainda se juntou a densa romaria pós-concerto dos The Kills. Entre “Candle flame”, “Fire”, “Coming back” ou “Good Times”, mais de 20 músicas no total, o já repetente e já em casa duo britânico de soul foi o aquecimento perfeito, numa noite muito fria, para o que ainda aí vinha.
Tudo parece perfeito à distância
Antes dos LCD, havia ainda uma viagem ao passado recente para ser vivida: a combinação de Postal Service e Death Cab for Cutie, projetos de algum culto unidos pelo elemento comum Ben Gibbard. Se Gibbard ficou primeiro conhecido pelo rock emotivo dos Death Cab for Cutie, no início do milénio, com o disco “Transantlacism”, logo o vocalista e compositor se juntou ao produtor Jimmy Tamborello para o mais eletrónico projeto The Postal Service: cujo álbum de 2003, o belíssimo “Give up”, com Jenny Lewis dos Rilo Kiley, teve ainda maior reconhecimento.
Em Lisboa, o Kalorama acolheu uma tour onde ambos os discos celebraram a passagem dos 20 anos e foi servida uma luxuosa dose dupla: primeiro estiveram em palco os Death Cab for Cutie, todos de escuro, lado mais indie rock, temas como “The new year” ou “We look like giants” a trazer já várias memórias ao muito público; e depois Postal Service, todos de branco, com apoio de uma vocalista feminina, onde a “batalha das bandas que partilham elementos”, se houvesse, era provavelmente ganha logo ao segundo tema, “Such great heights” – onde se canta como tudo parece perfeito à distância, numa metáfora para as relações.
Além de outras pérolas como “We will become silhouettes”, o final trouxe ainda uma versão de “Enjoy the silence”, dos Depeche Mode; algo paradoxal e impossível, aproveitar o silêncio entre 17 concertos, ainda assim a proverbial cereja no topo do bolo.