Filha de um filósofo búlgaro e de uma romancista canadiana, Léa Todorov nasceu em Paris e tem feito em França a sua carreira de argumentista e realizadora. “Maria Montessori”, o seu último trabalho, já está nas salas de cinema.
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“Maria Montessori” traça o percurso da mulher que dá o nome ao filme, interpretada por Jasmine Trinca, uma educadora que no início do século XX introduziu um método de ensino especializado em crianças com dificuldades.
De onde vem o seu interesse por este tema?
Passou primeiro pela questão das crianças que são diferentes, e do impacto nas mães. Eu própria fui mãe de uma criança com uma doença genética. Sei muito bem o que é ter uma criança diferente. A escrita desenrolou-se ao longo dos três primeiros anos da minha filha e foi influenciada por todos os estados de alma por que passei. Tive de aceitar esse caminho, antes somos como os outros, de repente já não somos.
Mas já conhecia a história da Maria Montessori?
Já a conhecia bem, e os aspetos particulares do seu método. Ao mergulhar na sua história alimentei também muito do que começou a ser a minha relação com a minha filha. Durante dois anos li tudo sobre ela, andava à procura de uma linha narrativa para a história, mas é claro que queria contar o momento em que teve de abandonar o seu próprio filho.
De onde vem a outra personagem do filme, a mulher que vem procurar a Maria Montessori para lhe tratar a filha?
Percebi que o filme também teria de se alimentar da minha própria história. A personagem dessa mulher esteve sempre lá, mas não sabia bem o que lhe iria acontecer. É por isso que o filme é dedicado à minha filha, que foi muito importante para a escrita dessa história paralela. Acaba por ser um filme sobre a negação e a rejeição.
Disse que já conhecia a obra de Maria Montessori. O que a levou a interessar-se por ela??
Porque trabalhei num documentário sobre pedagogias alternativas entre as duas guerras. A Maria Montessori era já uma das personagens desse filme. Tinha feito pesquisas muito profundas e sabia imenso sobre a sua vida e o seu método. Quando comecei a escrever este filme voltei a ler imensas coisas sobre ela. É verdade que visitei algumas das escolas que ainda usam o método dela, mas a minha pesquisa foi sobretudo literária.
Como é que escolheu as crianças que entram no filme?
São todos atípicos neurologicamente ou com problemas motores. Foi muito interessante trabalhar com crianças com problemas muito diferentes. Cada um deles podia fazer coisas que outras não podiam. Completavam-se muito bem. Formaram um grupo inacreditável, porque não era de todo homogéneo. Fizemos um casting tradicional,
fomos a várias instituições, escolas, centros de educação, associações, grupos de pais, hospitais. E recebemos imensas cartas de pais, a explicar o perfil dos filhos deles.
Como é que trabalharam com elas, para as tornar personagens do filme?
Fizemos estágios com coreógrafos, músicos, assistentes, passámos imenso tempo a conhecer-nos. A ideia era conhecermos aquelas crianças enquanto seres humanos e ver o que podíamos construir em conjunto. Cada dia perguntávamo-nos o que poderia acontecer e ao fim do dia havia sempre alguma coisa que se tinha passado. A estética do filme acabou por ser influenciada por tudo aquilo que íamos construindo.
Em que sentido o método dela influenciou a feitura do filme?
O método dela fala muito do amor que é necessário dar-lhes para que progridam. Utilizámos esse método para fazer o filme, mas de modo perfeitamente natural. A forma como o filme foi fabricado assemelha-se imenso aos métodos originais da Maria Montessori. A ideia foi também de mostrar a sua vida íntima, a sua vida de mulher. E de como conseguiu encontrar o seu lugar numa sociedade masculina, patriarcal.
Como é que convenceu os produtores a fazer um filme sobre este tema, sobre pessoas que a sociedade tende a esquecer?
Foi o meu produtor que esteve na origem do projeto. Para ele a questão coloca-se de forma inversa. Vem de um tipo de produção que mistura muito bem documentário e ficção. O segredo é não fazer medo ao público com a ideia de mostrar estas crianças, mas dar a ver a sua beleza, como qualquer ser humano. Fiquei muito contente de assistir a várias projeções onde, no final, os espetadores se mostravam encantados por terem visto o filme.
Como é que a Jasmine Trinca e a Leila Bekhti se adaptaram a trabalhar com as crianças?
Para as duas, foi mesmo uma motivação para fazer o filme. E também descobrimos que uma boa parte da equipa técnica estava muito interessada em viver esta aventura. A Jasmine começou a trabalhar muito cedo no filme.
Que tipo de trabalho é que fez?
Foi para uma instituição onde tratam crianças com graves deficiências físicas. Trabalhou com uma educadora húngara que me tinha ajudado a conseguir que a minha filha andasse. Para aprender os gestos e como trabalhava essa educadora. Para mim, a Jasmine foi habitada pelo espírito da Maria Montessori. Trabalhou a fundo com as crianças, foi extremamente generosa. Quando chegámos à rodagem, fomos todos tocados pela singularidade daquelas crianças.
E a Leila Bekhti?
É curioso, porque quando começámos a filmar teve um pequeno acidente e ficou com um pé imobilizado. Não conseguia andar sem coxear. De certa forma, e a uma pequena escala, tomou consciência do que era não se conseguir mover de um lado para o outro sem ajuda, de ter de pedir ajuda a toda a hora para fazer as coisas mais simples.
Qual foi o papel dos pais das crianças?
As duas atrizes ficaram muito tocadas com esses encontros. Elas as duas também são mães, criaram uma relação muito forte com os pais. E os pais ficaram muito contentes pelos seus filhos fazerem parte de um filme com duas atrizes tão reconhecidas. Normalmente são alvo de um estigma social. Houve uma inversão muito forte para as famílias.
Tocando na imagem que a sociedade tem sobre os deficientes, o filme torna-se também um objeto político.
Há um tabu do olhar. Não queremos olhar. Era isso que me motivava. O filme é já muito político na sua fabricação, no sentido de o fazermos todas juntas, mas também no que transporta como mensagem. Fala também do destino de Maria, do destino das mulheres daquela época, mas acima de tudo da capacidade daquelas crianças a representar e do trabalho que é necessário fazer sobre o olhar.
A Léa também teve de fazer esse trabalho, na sua vida pessoal?
Eu própria fazia parte do grupo de pessoas afetadas por essa dificuldade de olhar. Ver a minha filha assim foi um choque, mas depois tive de o aceitar. E progressivamente comecei a aceitar os outros. De não olhar para a deficiência, mas estabelecer uma relação humana.
Como é que está a situação em França, para as pessoas com deficiência?
Não sei a situação nos outros países, mas há ainda a questão política da desigualdade de direitos. A maior parte das pessoas que têm uma qualquer deficiência estão fechadas em instituições, onde não têm quaisquer direitos, não vivem a sua sexualidade, há uma privação alucinante dos seus direitos societários. A situação é calamitosa, mas as autoridades fazem de conta que está tudo bem.
Era necessária outra Maria Montessori, hoje…
Há crianças hoje com estas condições que têm uma manhã de escola por semana. Ela dizia que estas crianças necessitavam de três vezes mais horas de ensino que as outras, porque tinham dificuldade em aprender. Para que se tornassem autónomas e fizessem parte do mundo. Era a ambição dela.
A Léa vem do documentário. O que é que a ficção lhe deu mais?
Tinha um grande desejo de contar histórias. E tive um prazer enorme com a colaboração múltipla, é extraordinário trabalhar com equipas que são mais importantes que na ficção. Como realizadora, sinto que sou capaz de ir mais longe. E posso tocar um público mais largo, partilhar o meu trabalho com um número maior de espetadores. E na escrita, sempre gostei de partir do real. Parece-me essencial regressar sempre ao real. O cinema deve falar do mundo em que vivemos.