Ator, encenador e dizedor Mário Viegas desapareceu há 25 anos. Viveu segundo as suas regras e reinventou o modo de ler e interpretar poesia.
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No ano em que faleceu propunha-se levar "o sonho ao poder" através de uma candidatura à Presidência da República apoiada pela União Democrática Popular. Era o passo mais arrojado de uma vida marcada pela intervenção política e cultural. Desde 1966, quando se estreou com uma leitura de poemas na cidade onde nasceu, Santarém, viu serem proibidos os seus discos pela censura do Estado Novo, envolveu-se com várias companhias de teatro antes e depois do 25 de Abril, participou em 15 filmes, fez programas de televisão, leu poesia. Mário Viegas desapareceu num dia das mentiras.
"Viveu segundo as regras dele e marimbou-se sempre para as ortodoxias, fossem políticas ou artísticas", disse ao JN Maria do Céu Guerra, atriz e fundadora da companhia A Barraca, alguém que olhava para Viegas como um "irmão". "Era um artista que ajudava a subir o teto para que se respirasse melhor. Mas nunca foi exatamente um profissional. Não via o teatro como trabalho e evitava ao máximo os subsídios para não criar compromissos e enleios - toda a arte que fez era uma expressão de vida".
Maria do Céu conheceu-o em 1970, no espetáculo "Um chapéu de palha de Itália", de Eugène-Marin Labiche, produzido pelo Teatro Experimental de Cascais, a primeira companhia de Viegas. "Fazia um papel secundário em que gritava "groselha, groselha", e lembro-me que no final encontrei o Raul Solnado, que me perguntou quem era aquele ator, augurando-lhe uma carreira de sucesso". A atriz recrutou Viegas para a sua companhia, ajudando-o a combater "um preconceito que sempre existiu contra os atores cómicos, vistos como artistas menores se não fossem um António Silva". O momento de afirmação plena surgiu em 1979, quando protagonizou "D. João VI", texto de Hélder Costa produzido pel'A Barraca. "Mostrou todo o seu rigor e versatilidade e fartou-se de ganhar prémios".
Passou ainda pelo Teatro Aberto e fundou vários grupos, como a Companhia Teatral do Chiado, onde trabalhou textos de Beckett, Strindberg ou Pirandello. No cinema foi "Killas, o mau da fita", de José Fonseca e Costa, e chegou a contracenar com Marcello Mastroianni em "Afirma Pereira", de Roberto Faenza. Chegou a Portugal inteiro nos anos 1980 através dos programas "Palavras ditas" e "Palavras vivas", onde dizia poesia num registo que cruzava linguagem televisiva, poética e teatral.
Vestir a roupa do poema
Essa faceta de dizedor, porventura a que o tornou mais célebre, fez escola e deixou descendência. "Ao lado de Luís Miguel Cintra e Eunice Muñoz, foi dos primeiros a romper com uma tradição em que os poemas eram lidos de forma ornamentada e histriónica e trouxe um registo íntimo e realista", diz Renato Filipe Cardoso, poeta e dizedor. "Era alguém que vestia a roupa do poema e do autor e se travestia nas palavras enquanto as dizia". O autor do espetáculo de poesia "Missa maldita" lembra ainda o seu papel de divulgador. "Lia não só os clássicos mas também a poesia mais contemporânea e marginal. Deu alento a quem escrevia de forma diferente". E recorda a leitura de "A cena do ódio", de Almada Negreiros, como a mais impressionante a que assistiu.
Gravações inéditas de Viegas em maio
Um audiolivro com gravações inéditas de Mário Viegas será publicado em maio. Trata-se de leituras que o ator fez durante o período em que viveu no Porto, entre 1968/69, onde estudou História na Faculdade de Letras e trabalhou com o Teatro Universitário do Porto. As gravações foram-lhe pedidas pelo médico Jorge Leite Ginja, que as queria levar para Angola, onde esteve destacado durante a guerra colonial. Incluem poemas de Alexandre O"Neil, Ary dos Santos, Guerra Junqueiro, Pablo Neruda ou Bertolt Brecht; e excertos de peças de Gorki e Tchékhov. As fitas foram descobertas pela filha do médico, Catarina Ginja, e revelam já toda a sua expressividade e idiossincrasia no modo de dizer poesia.