Artista plástica de 51 anos expõe novos trabalhos na galeria Art Lab 24, em Espinho, até ao dia 17 de fevereiro
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Talvez a fé e/ou a superstição cheguem quando se finta a morte. Não sei como foi com a Marta de Aguiar (AO, 1972) e sei que não lhe perguntei o porquê do número 5 (cinco) no primeiro encontro e exposição que fizemos em 2016. Talvez porque, felizmente, nunca fiz essa finta e receei que ela me dissesse como era… Mas senti-lhe o desassossego logo ali e, sobretudo, como este se traduzia em pluralidade de materiais e tecnologias e numa riqueza simbólica de elementos de que se apropriava como parábolas ou metáforas.
Encontramo-nos anos depois e, interessa primeiro dizê-lo, a sólida formação académica da Marta de Aguiar, Licenciada em Artes Plásticas- Escultura pela Faculdade de Belas Artes da universidade do Porto, pós-graduada em Artes Decorativas pela Universidade Católica do Porto e com a evolução e a inquietação de quem ensina e forma outros nunca se esquecendo de aprender, continuava a sentir-se.
Expõe desde 1995 e é essa maturidade de quem muito andou que faz da sua produção, não obra do acaso, mas da intenção, do fim concreto que emerge da imaginação pulsante e densa. A obra mantém um carácter experimentalista e, não obstante a Mulher se ter aproximado nos hábitos da natureza, a Artista continua a interessar-se pela duplicidade das matérias que me parecem trazer agora à produção o sentido de reflexo, dado, objetivamente, pela presença dos espelhos e pela biografia que está agora mais presente do que nunca.
Em “Desassossego”, exposição individual que Marta de Aguiar apresenta no Art Lab 24, em Espinho, até 17 de fevereiro, com curadoria de André Lemos Pinto e Paulo Moreira, a artista explora uma narrativa pessoal e íntima, vestida de erotismo e despida de hesitações. As cinco obras, conjuntos escultóricos de perceção instalativa como é seu hábito, ocupam paredes e chão da galeria, numa escala de observação que coloca ao espectador o desafio de sentir o que não consegue ocultar-se.
Não há mensagens subtis, mas antes uma sublime forma de contar a dor, a superação e o riso. A apropriação é tendência e a obra “Marias(s)” é disso exemplo, tendo levado a artista a uma busca pelas campânulas certas da Vista Alegre que reproduzissem o peito certo da Mulher-Marta que pode ser uma mulher-outra qualquer que verá aqui, bem como em “Faço paisagens com o que sinto”, estórias ou medos. Seguramente empatia. Desta última interessa destacar, da composição de 24 elementos, a diversidade de materiais que vão do chumbo ao gesso, passando pelos espelhos, numa montagem rigorosa e com a semiótica do corpo sempre presente.
A busca pelas campânulas da Vista Alegre surtiu outros efeitos e traz ao trabalho de Marta de Aguiar uma presença contemporânea do que eram, outrora, coisas das artes decorativas ou menores, como a cerâmica. Mas não nos enganemos sobre as coincidências neste ponto relativas à sua formação, acima referida.
O Historiador de Arte austríaco Ernst Gombrich (1909-2001) escreveu que ″realmente não existe arte; existem apenas artistas″ e, nessa existência não há coincidências, há urgências e meditações que ultrapassam o limite do tempo e do espaço expectável à produção. É ou não é. E em “Se cá vens ficas com a vista alegre”, obra constituída por 15 elementos e materiais como madeira de castanho, a faiança de Sacavém e a porcelana da Vista Alegre (que se adivinhava repetir), a artista leva-nos para o universo dos pensamentos simples do quotidiano e para essa leveza de conversa que a sua obra também tem.
A mesma prorrogativa em “Desenrolo-me como uma meada multicolor ou faço comigo figuras de cordel”, feita com 5 elementos de gesso, 5 espelhos de dimensões variadas, madeira de castanho e cordel, em que voltamos ao cinco e eu continuarei sem fazer a pergunta do porquê da fé e/ou superstição. Sou mulher e as estórias e medos que identifico são também meus.
Não sei se é a maior ou mais pequena exposição que Marta de Aguiar já realizou, mas é a mais representativa da qualidade do seu trabalho, da inegável força da sua obra e escrever sobre tudo isto, mais do que um enorme privilégio, é de uma enorme responsabilidade.
A primeira peça que a artista que mostrou foi “Púbis”, feita de veludo encarnado, madeira de castanho, berbigão de prata da Leitão & Irmão, lupa com cabo de prata, pelos púbicos e ferro. Não adivinhei as demais, mas antevi o processo da tal apropriação complexa, rica e densa, feita de recantos da memória, da biografia e da sexualidade, não como ato, mas como símbolo de vida e de verdade do corpo.
Até ao fim, a artista hesitou (pela leitura do espaço de exposição) na inclusão de outros elementos, outras obras, com novo recurso ao gesso, aos espelhos e ao chumbo, numa poesia de meios que contrastam em resistência e sensações, mas que os mamilos em figuração sugerida ligam.
Não importa se o cinco se mantém ou não. Interessa o ponto de partida e o processo porque, quando se finta a morte, a viagem é que vale e é dela que se contam estórias.