Gaya de Medeiros estreou ontem à noite "Pai para jantar", no Festival DDD - Dias da Dança, num esgotadíssimo Teatro do Campo Alegre. Espetáculo repete esta sexta-feira, às 19.30 horas.
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Gaya de Medeiros, artista selecionada para ser uma das Guests no ano passado, tendo a oportunidade de desenvolver o seu trabalho no DDD apresentando apenas uma ideia, com tempo para a trabalhar, foi das mais bem-sucedidas, estando este ano programada em (quase) todos os festivais de artes performativas nacionais como autora ou intérprete, ou ambos.
"Pai para jantar" começa com um convite a um homem do público para se conhecerem, sentados numa mesa, como numa referência à performance de Marina Abramovic, "A artista está presente". O ataque é rápido, "3,2,1" e chega a declaração de intenções: "Fica confortável se eu tirar a roupa toda?", interroga Gaya.
A artista transexual, leva a causa como bandeira e insiste em aparecer, recorrentemente, despida em todos os espetáculos, conseguindo normalizar e visibilizar a anatomia transexual. Em "Pai para jantar", com um texto muito mordaz, não deixa de abordar a questão, desenvolvendo a teoria de que gostava de ver todas as pessoas despidas, especialmente as que têm de vestir fardas referentes às suas profissões, como o Papa sem roupa de Papa.
Debaixo da mesa está um violinista (Gil Dionísio) que parece assistir, impávido, à cena entre estes dois. Num ataque à jugular, Gaya explica a este homem que o quer ouvir roncar no seu ouvido todas as noites. De supetão, num golpe seco pára. Uma fábula de interlúdio, um Minotauro num labirinto invadido por uma mulher talho e flor, cujo desígnio é abrir. Tudo o que o Minotauro consegue é ficar aferrolhado nos seus próprios labirintos mentais.
Gaya domina a ironia e o ritmo na perfeição, é uma provocadora nata, e fá-lo sempre elegantemente, entre linhas. Os cavalheiros são apenas lobos pacientes, então ela inverte a lúdica e propõe um jogo de ping pong imaginário entre os dois. Conta então a história de uma tia intrusiva que desconhece o limite entre o respeito e o desrespeito, e no meio deste jogo de sedução interpela Gil Dionísio.
O violinista, "um principezinho que tem de ter muito cuidado com o que cativa", numa alegoria, conta histórias de ciganos e com uma graça desmesurada explica o motivo pelo qual as músicas ciganas romenas têm uma cadência muito melhor do que linhas harmónicas simples, atribuindo o valor ao movimento e aos saltos das carroças.
Muda o foco e enquanto toca trechos de temas vários, discorrem sobre a masculinidade e como endurecem e amolecem os músculos e a importância da durabilidade, repetindo: "Dura o que dura, mas enquanto dura, dura". Não é isto que é ser homem? Passado de pais para filhos? "As crianças moles que são obrigadas a ficar homens duros". Mostrando que a literalidade não mora na densidade dos espaços criativos que Gaya habita.
Como conta poeticamente, nem tudo se resume a contração e relaxamento de músculos, nas relações dos homens. Voltando à mesa, com o seu escolhido entre o público, decreta que chegou a hora de se tocarem e segurarem as mãos.
Com os três deitados declaram: "Não é o teu sexo o que procuro no teu sexo". Não sendo estritamente um espetáculo de dança, "Pai para jantar" é a certeza de que não há nada mais poético do que o humor. Gaya de Medeiros tem dado, com textos originais, provas de criatividade e de qualidade contínuas, sendo uma aposta completamente ganha.
O programa do DDD segue até dia 30.