Faye Driscoll apresentou nesta quinta-feira à noite no DDD "Thank you for coming: space", espetáculo que é o culminar de uma trilogia que encetou em 2012. Hoje, tem nova récita às 21.30 horas no Teatro do Campo Alegre, no Porto. Não é uma experiência para todos.
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Assim como existem espetáculos com avisos para pessoas fotossensíveis, ou outras condições, o espetáculo "Thank you for coming: space" da norte-americana Faye Driscoll, também carecia de um aviso sobre a violência emocional do que ali se ia desenrolar.
O dispositivo cénico de um branco imaculado, com uma contundente luz nívea, montado sobre o palco tinha uma intricada rede de cordas, roldanas, microfones, sinos, pedais, placas de cimento, barro e ramos de eucalipto sobre a cabeça do público - também sentado em cena - o que logo à entrada criava um certo nervosismo sobre qual o lugar escolher para sentar. Não será provável que alguém do público sofra um acidente, mas sabemos que o impossível é apenas uma opinião. Desde ontem à noite, mesmo os mais otimistas têm disso a certeza.
Chegados à vida adulta, a esmagadora maioria das pessoas sabe o que é perder alguém para a morte. Assim como estará consciente de que vai morrer e de que todas as pessoas de que gosta (e as de que não gosta também) vão todos morrer.
Faye Driscoll entra em cena e começa por agradecer a todos por estarem presentes, por se terem conseguido levantar da cama, vestir, caminhar, comprar o bilhete, ver os alertas e ter ido ver o espetáculo dela. Parecem tudo minudências, mas a partir daqui toda a narrativa construída faz-nos crer que estamos perante uma personagem profundamente deprimida e constantemente alerta para as pequenas coisas.
Num jogo de composição em tempo real, (quase) todo o público é interpelado a obedecer às suas ordens, apesar de o fazer sempre num tom suspirado. Pede para lhe darem a mão, para a ampararem, para puxarem por ela, para lhe segurarem a cabeça, sempre com uma expressão profundamente alterada e começa a soltar as roldanas. Pondo em evidência os efeitos físicos, se soltamos a roldana de um lado, alguma coisa se há de desatar do outro, é duplamente uma alegoria e uma realidade. Caem com sons aterrorizantes objetos, que a intérprete quer amplificar e fazer novos sons com microfones e pedais.
A maioria do público tem uma expressão de terror e não evita os movimentos reflexos, de saltar quando algo cai, desviar-se e encolher-se calculando a rota de colisão, e piscar os olhos. É impossível não relembrar Brecht e o seu "Pequeno Organon para o Teatro" : "O Teatro consiste nisto: em fazer uma viva representação de factos acontecidos ou inventados entre seres humanos e fazendo com a perspetiva da diversão". Há diversão no terror? Talvez os amantes do gore, ou só de David Cronenberg, concordem.
O espetáculo obedece indubitavelmente a esta categoria. Numa espiral de insanidade, Faye Driscoll bate com blocos de cimento sobre o peito, até ficar sem ar, atira-se de roldanas penduradas, talvez com pretensão de cair, arremessa placas de barro, pede que lhe seja dado a beber uma espécie de detergente, morde limões, assim como caminha em sapatos sabendo que vai tropeçar. Estamos a vê-la morrer, enquanto pede simultaneamente que a salvemos, distribuindo folhas de eucalipto para lhe aliviar o peito.
Passada esta catarse, culminada com o público todo a patear o cenário, enquanto ela grunhe sons ao microfone, e solta todas as cordas e as roldanas apanhando algumas pessoas pelo caminho, sobe a uma espécie de altar e pede ao público que repita falas com ela numa espécie de missal.
Mas, como num filme de Lars von Trier, em que queremos acreditar até ao fim que vai existir reparação, não vai. O caminho é sempre a descer. Quando a mais ínfima esperança resiste, ela arranca-nos todas as crostas das feridas e esventra-nos as cicatrizes. Começa por nos mostrar os objetos pessoais de quem morreu, o pente, os cabelos que ficaram, o diário, os comprimidos e depois os órgãos em decomposição. Há pulmões lama, pâncreas em plasticina, estômago em gelatina. Não satisfeita atira : "És tão atrativo, não és? Agora até as moscas pousam todas em ti. E sabes, todas te querem fazer filhos e mais filhos e mais filhos".
No fim, ascende as escadas do teatro, desaparecendo numa luz branca. Talvez Faye Driscoll não saiba que Portugal tem uma franja de pessoas que deliram com o registo fatalista da hipocondria, de falar das doenças, das doencinhas, das mortes, das causas e das consequências. Há um morbo tétrico instalado, um síndrome de carpideira e uma enorme manipulação. Talvez não saiba que o fatalismo permanente é um tédio e que cada dia que não morremos é um dia em que estamos vivos. Só na ópera e no melodrama é que a morte é o anticlimax.
Para quem quiser a experiência, o programa segue hoje.