Urso de Ouro no Festival de Berlim, “Sobre L’Adamant”, de Nicolas Philibert, estreia nos cinemas portugueses. O "Jornal de Notícias" conversou com o cineasta francês.
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Veterano documentarista francês, de quem tínhamos visto nos cinemas apenas “Ser e Ter”, há já mais de vinte anos, Nicolas Philibert venceu este ano o Urso de Ouro de Berlim com “Sobre L’Adamant”. No filme, sobre uma associação parisiense de apoio a doentes mentais, o realizador volta ao tema da loucura, que abordara já em “La Moindre des Choses”. Nicolas Philibert esteve na Cinemateca a apresentar uma retrospetiva da sua obra e antes, ainda em Berlim, falou ao JN sobre o seu último filme, agora em estreia nas salas.
Já não é a primeira vez que aborda o tema da loucura…
É algo que me interessa, que me diz muito. Que me preocupa e apaixona. Preocupa, porque a psiquiatria não está bem. Está em grande perigo, em França. Penso que também em muitos outros países. E apaixona-me e diz-me imenso, porque a psiquiatria, é uma lupa, um espelho da nossa humanidade. É um tema inesgotável. Alguns dos pacientes que filmo são muito lúcidos. Por vezes, muito inteligentes. Alguns deles muito cultivados. E são muito tocantes. É uma parte da nossa humanidade, fazem parte de nós.
As pessoas que mostra dizem o que pensam, sem qualquer filtro…
Algumas daquelas pessoas por vezes não estão muito bem. Há algumas que estão estáveis, e há outras que podem entrar em delírio. Mas estas últimas não filmei. Imagina o que seria verem o que filmei, uma semana depois, quando estivessem melhor? Não era possível. Não estamos no domínio da ficção. Os atores interpretam. Aqui, é a vida deles que está em jogo.
Como é que descobriu este lugar, no centro de Paris mas tão pouco conhecido mesmo pela maioria dos parisienses?
Desde “La Moindre des Choses” que fiquei muito ligado a uma psicóloga e psicanalista que entretanto se mudou para Paris. E participou na fundação do L’Adamant. O L’Adamant não é um local fechado sobre si mesmo, é um centro de dia, mas que faz parte de uma rede.
Basicamente, como é que funciona?
Há doentes que estão em casa e vêm ali passar o dia, participar num ateliê ou simplesmente beber um café e há os que estão internados e vão ali por vezes. Mas é mais difícil, porque se estão hospitalizados é porque não estão muito bem. Mas por vezes têm a força de se levantar, vestir-se, apanhar o autocarro e ir lá. O homem que canta no início está no hospital, mas vem duas vezes por mês ao L’Adamant, por causa do grupo de musica.
Toda a gente estava consciente de que estava a preparar um filme?
Sim, expliquei tudo a toda a gente. Não apareci ali de repente com uma câmara. Fui lá várias vezes, para explicar o meu projeto. Por exemplo, nessa sequência de abertura, todos os pacientes e os médicos e enfermeiros sabiam do filme. Nesse dia aquele paciente cantou várias canções e guardei uma delas para a montagem final.
O episódio da organização de um festival de cinema é muito curioso. Há mesmo um paciente que tem uma consciência muito grande do que é a história do cinema.
Esse senhor que fala de “A Noite Americana” do Truffaut conhece uma centena de filmes, plano por plano. De Bresson, Rivette, Wenders, Rohmer. Porque aproxima esses filmes da sua vida. Diz que “Paris, Texas” é a história dele. E o mesmo de “Le Pont du Nord”, de Rivette, ou das “Quatro Noites de um Sonhador”, de Bresson. E o mesmo de vários livros, ou do Tintin. Pergunta-se mesmo como é que o Hergé conhecia a história da família dele.
Houve alguém que recusasse ser filmado?
Quase todos aceitaram. Eu nunca insisto. Alguém não quer ser filmado? Não há problema. Mas tenho quase sempre boas relações com as pessoas que não querem ser filmadas. Algumas, mesmo que não queiram, acabam por se interessar pelo filme. Vêm olhar pela câmara, tornam-se cúmplices.
Algumas arrependem-se depois de não ter querido?
Por vezes não querem e ao fim de três semanas dizem que sim. Porque não? É normal. Quiseram ver como é que filmo as pessoas, se as respeito. Neste caso, antes das filmagens havia uma dezena de pessoas que não queria, mas ao fim do segundo dia de filmagem oito deles aceitaram.
Quanto tempo é que passou lá, desde o primeiro até ao último dia de rodagem?
Foram sete meses. Mas não estive lá o tempo todo. Foi em diversas vezes. Uma câmara é de qualquer forma um objeto que impõe a sua presença. É preciso deixar as pessoas respirar um pouco. Estava lá uma semana, ausentava-me duas, depois vinha mais um bocado. É um pouco assim que trabalho. Não gosto de fazer com que as pessoas se sintam reféns.
É difícil não pensar em “Titicut Follies”, de Frederic Wiseman, que neste momento até vive em Paris. Foi uma inspiração?
É alguém que admiro, de que gosto muito. É um amigo. É uma pessoa por quem tenho ao mesmo tempo um imenso respeito e muito carinho. Gosto muito dele, do seu humor. Por vezes, aos domingos, fazemos caminhadas juntos.
No início da nossa conversa referiu os problemas por que passa a psiquiatria em França. São questões políticas, financeiras?
É uma questão sobretudo económica. Para começar, o sistema de saúde vai mal em França. E a psiquiatria vai particularmente mal. Os enfermeiros do setor têm cada vez mais trabalho administrativo, passam metade do tempo à frente de um computador. Em vez de estarem com as pessoas que precisam delas, de falarem com elas, de fazerem coisas com elas, para as fazer sair da sua solidão. Quando não há tempo para isso, o trabalho deixa de ter interesse.
Há falta então de profissionais no setor?
Há muitos que se vão embora e são substituídos por trabalhadores intermitentes, que fazem uma semana aqui e ali, e como tal não se investem muito no que fazem. Não se consegue fazer um trabalho a longo prazo. Tudo isto faz com que haja cada vez menos camas para o setor, que o pessoal deserte e que os pacientes fiquem entregues a si próprios. E hoje há esta sacrossanta crença de que se pode tratar as pessoas com algoritmos. Para onde vai a dimensão humana, que permite que a psiquiatria exista?
É por isso que o seu filme termina com uma nota um pouco pessimista, com a frase, “até quando?”
Sim, porque não estamos a caminhar no bom sentido. É assim em todo o lado. Estamos num mundo cada vez mais à mercê da inteligência artificial, dos algoritmos. Para onde vai a humanidade? Tenho vontade de dizer, viva o erro. A psiquiatria não é uma ciência exata. Não se pode fazer um diagnóstico por computador e mandar a pessoa despachar-se e ir para casa. Não é assim que se tratam as pessoas.
Apesar de tudo, o associativismo em França é uma realidade muito interessante.
Felizmente que sim. E um local como o L’Adamant é um pequeno foco de resistência. Em França há muita gente que prefere manter-se digna e exercer uma psiquiatria digna desse nome.