O Festival internacional de marionetas do Porto (FIMP) termina este domingo, com o espetáculo "Como convertirse en piedra", da chilena Manuela Infante.
Corpo do artigo
Este sábado, o penúltimo dia do FIMP arrancou engalinhado. A greve da função pública cancelou a récita de "Spirals", de Tim Oelbrandt, no Teatro do Campo Alegre e a chuva anulou a apresentação do documentário sobre Teatro Dom Roberto, na estação da Trindade. Mas, a chilena Manuela Infante pôs uma pedra sobre o assunto, num quase lotado Teatro Carlos Alberto.
"Como convertirse en piedra" tem um começo desconexo. Três personagens (assumimos que são mineiros, ou exploradores de Marte) acompanhados dos seus duplos, podem ser simultaneamente pais e filhas e outras pessoas não identificadas. As suas vozes vão sendo alteradas a pedal, e o diálogo não tem sequência lógica. O estado é desconfortável para o espectador, apesar de nos pedirem continuamente desculpa por se repetirem e ainda que o resultado plástico seja interessante.
A pergunta repete-se :"Lembras-te de quem sou eu? Lembras-te de quem és tu?". Nunca há resposta do outro lado. Nunca se fala do ponto de vista do demente, mas dos sãos (os que se encaixam nas normas), talvez para quem esteja do outro lado, as perguntas sejam assim, uma sucessão de repetições e assuntos aleatórios.
Nesta introdução a explicação é mineral, as pedras são acumulações de capas, por isso dói tanto levar com uma pedra, porque são anos de história acumulada. Nesta mesma capa de "memória erosada" misturam-se então Platão e a sua alegoria da caverna e a história de Eco, a ninfa que traindo a confiança de Hera é vetada a viver numa caverna, sem voz própria.
A questão das mulheres, e do seu lugar de fala é recorrente na peça e tem o seu climax num impactante monólogo irónico, linguagem que Infante domina na perfeição, " as mulheres querem-se com capacidades de ligação, de diálogo, não têm capacidade de produzir, mas têm capacidade de se reproduzir, as mulheres zangadas ficam feias, questionam as leis de vida. E depois sabemos que de vez em quando as derrocadas existem...". A ameaça velada é das mais dilacerantes. Mas, num dia como o de sábado, em que 40 mineiros estavam subterrados na Turquia e a ficção está de mão dada com a realidade, o peso da pedra é mais forte.
Verde cobre, verde raiva, verde morte
Como num desenho de pintar por números, quando todas as frases desconexas do início começam a fazer sentido, toda a dramaturgia ganha uma nova velocidade. Uma filha quer exumar os corpos dos seus pais, recusa abnegar-se com indemnizações compensatórias. Recusa-se a aceitar que o que começou com um gosto metálico na boca, termine com o pai com um interior verde cobre, como um marciano, verde raiva, verde morte, a guardar os dentes num saco. Rejeita que haja homens que contam os seis órgãos que lhe restam, a representarem orgulhosamente o mineiro chileno, como um homem estátua petrificado, em troco de umas moedas caridosas. Esta mulher recusa-se a que os chilenos sirvam de base para um jardim de pedra japonês, um jardim de paz.
Se lhe derem a escolher -o direito de escolha é uma grande vantagem - quer ter um coração de pedra.
Manuela Infante tem uma fórmula alquimista muito interessante: ou nos dá pedradas com as imagens muito criativas que cria, apaziguando-nos a dor com as palavras, ou vice-versa. Apesar das inventivas artimanhas cénicas, muito bem coreografadas, o seu grande poder é a ironia.
"Como convertirse en piedra" tem hoje a última récita, às 16 horas.
A encerrar o FIMP é hoje apresentada, às 19 horas, no Teatro de Ferro, a performance "Arquivo Zombie-o arquivo morto do Teatro de Ferro".