Nuno Faria: "Museu vai dedicar-se verdadeiramente ao escrutínio do romantismo na cidade"
Debaixo de contestação por ter transformado o antigo Museu Romântico do Porto, Nuno Faria, diretor artístico do Museu da Cidade, explica por que razão quis tornar aquele espaço mais inclusivo e ao projeto mais coerente, nomeadamente com a recuperação da programação musical baseada no repertório romântico. Defensor da conservação e do estudo do património, anuncia ainda que serão realizadas obras de requalificação no Abrigo dos Pequeninos, nas Fontainhas, que passará a ser uma reserva museológica.
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Nuno Faria é professor, programador, curador e historiador da arte. Estudou na Bélgica, trabalhou no Instituto de Arte Contemporânea e na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Fundou o projeto Mobilehome - Escola de Arte Nómada, Experimental e Independente, no Algarve, e dirigiu o Centro Internacional das Artes José de Guimarães, em Guimarães. Aos 50 anos, dirige o Museu da Cidade, no Porto, para o qual criou 16 estações distintas com um objetivo comum: fazer com que os espaços revestidos com uma programação dinâmica sejam habitados de uma forma democrática.
O seu projeto para o Museu Romântico, agora designado Extensão do Romantismo, está a ser criticado por desvirtuar um certo imaginário - o de uma Casa-Museu, que devolve o ideal de vida da sociedade burguesa de 1850 - que a cidade do Porto tinha sobre ele. Entende a perplexidade que esta mudança causou, e que poderá resultar tanto na visão criada em 2018, como da visão herdada dos 50 anos anteriores?
A remodelação agora empreendida resulta de uma cuidada e longa ponderação que integrou um grande número de preocupações e de fatores. Deve-se, em primeiro lugar, a entendermos que o museu, aberto durante cinco décadas segundo um modelo de encenação de uma casa burguesa, o que não é a mesma coisa que uma casa-museu, deveria agora tornar-se um espaço mais inclusivo que se dedique, agora, verdadeiramente ao escrutínio do Romantismo na cidade nas suas diferentes facetas, dando protagonismo aos verdadeiros protagonistas, que são os artistas, escritores e músicos, por exemplo. Nesse sentido, e em articulação com a programação da Feira do Livro, começámos com Júlio Dinis, um vulto que não pode ser mais portuense nem mais romântico.
Essa mudança, apresentada como "rutura com o passado", retirou do plano visível o papel de parede, os móveis, os quadros, as gravuras, os tapetes e outros têxteis. O que preservou do que encontrou? E que justificação encontra para aquilo de que prescindiu?
Não se trata de preservar ou de prescindir. A maioria das peças que estavam expostas pertence à coleção do Museu da Cidade e, como tal, são objeto ou de restauro (algumas acusavam já o desgaste de muito tempo de exposição) ou estão devidamente guardados nas nossas reservas.
Nos últimos dois anos, a equipa do Museu da Cidade vem empreendendo um enorme esforço de inventariação integral e rigorosa das coleções municipais, aquelas que estão nas reservas do município e aquelas que estão nas reservas do Museu Nacional Soares dos Reis.
A coleção é a principal riqueza e matéria de trabalho de um museu, e connosco não é exceção. Desta forma, estamos há já bastante tempo a preparar, beneficiando do trabalho qualificado de investigação e estudo que herdámos, mas também daquele, entretanto feito, as próximas remontagens do espaço da Extensão do Romantismo, em particular.
Todos os objetos da coleção são importantes para nós e, na última montagem do Museu, que integrava uma grande quantidade e diversidade de tipologias de peças, há vários que seguramente mostraremos em próximas montagens, com outra linguagem expositiva seguramente.
Há objetos, em tempos doados à cidade, que estão a ser devolvidos às respetivas famílias. Mesmo tratando-se de um processo em curso há cerca de três anos e, portanto, anterior à sua direção, por que razão está isso a acontecer?
Importa esclarecer essa questão, para que não se perpetuem quaisquer equívocos. Todos os objetos doados e formalmente aceites pelo Município foram integrados na coleção e constituem património municipal, como tal integram as nossas reservas ou os nossos espaços expositivos.
Somente as peças colocadas em depósito estão, como diz e bem, desde há três anos, a ser entregues aos seus proprietários, a quem manifestamos a gratidão de os terem emprestado ao Museu. Conforme se percebe, nada disto tem a ver com menor interesse, mas a falta de espaço de reserva é, aliás, um problema recorrente e frequente em muito museus.
Não era possível uma solução de compromisso entre a introdução de arte contemporânea no espaço - mesmo que com artistas herdeiros do Romantismo - e a manutenção de elementos do imaginário anterior, que também ilustra aquela época? Sobretudo numa casa que tem dez salas?
Estamos a falar de diferentes visões daquilo que pode ser e propor um museu no século XXI. Entendemos que a visão que ali perdurou durante cinco décadas, e cuja última montagem de certa forma acentuou, correspondia a um paradigma que não é conciliável com o novo museu que estamos a criar. Nada disto tem a ver com arte contemporânea.
Tenho ouvido algumas manifestações desse receio a algumas pessoas e queria dizer que são infundadas. Não se trata de substituir os artistas contemporâneos ou a arte contemporânea pelas obras de outros tempos. Trata-se, isso sim, de fundar um museu que dialogue e reaja ao tempo em que existe, que seja mais dinâmico, que seja permeável a novos discursos e inquietações.
E, neste paradigma, interessa-nos promover diálogos entre épocas e linguagens, entre a arte e a música, entre a escrita e arquitetura, criando uma plataforma mais alargada de fruição e de discussão, o que começará desde já a acontecer no final deste mês de setembro com o programa musical concebido pela pianista e professora Sofia Lourenço e pelo maestro e organista Pedro Monteiro, que incide sobre autores portuenses do período romântico.
A encenação, como lhe chama, que estava patente na casa, tinha a virtude de ser empática, percetível por qualquer pessoa. A sua reinterpretação do romantismo parece mais hermética, mais elitista. O JN acompanhou uma das suas visitas guiadas, em que deu como exemplo uma "sala vazia", disse, "mas que, na verdade, está cheia". Admite que isto contradiz ou pelo menos dificulta a democratização do acesso à arte de que diz ser apologista?
As nossas preocupações em termos de mediação são centrais e ditarão o sucesso ou insucesso do nosso projeto. Duvido muito da capacidade de empatia ou de reconhecimento que devolvia o aparato cénico anteriormente ali instalado.
Tratava-se de um espaço em espera, congelado no tempo e no modo, cujo acesso era limitado na grande maioria das salas à visão ou, para ser mais preciso, à entrevisão: os visitantes tinham de espreitar para dentro das salas, por vezes com ângulos parciais de perceção do interior dos espaços (o escritório, a sala de estar), havia uma mesa posta, com talheres e pratos, e alimentos artificiais, em que ninguém se podia sentar, e as pessoas por ali circulavam, como que a contemplar uma realidade que não as inscreve, nem lhes concerne.
Um museu-cenário não é uma conceção de museu que queiramos para o nosso tempo, por muito que nos custe, por nostalgia ou qualquer outro bom sentimento, perder. Para preservar a sua memória, existem os livros, existem os relatos, existem as peças que serão reinscritas e convocadas para novos discursos e apresentações.
O Romantismo diz respeito a um período específico da História. A sua urgência de o revestir de contemporaneidade não coloca o foco apenas no que dele existe de inspiracional, ignorando o que foi?
O Romantismo emergiu numa determinada época, mas não é coincidente em todos os contextos em que existiram manifestações sociais ou estéticas que a ele possamos associar. Há muitos romantismos históricos em diferentes países (o alemão, o francês, o inglês, o português, entre outros) e todos são diferentes entre si, divergindo entre si.
Mas, também é verdade que o romantismo não é somente nem sobretudo a reação a um tempo determinado, ele é também uma forma de persistência espiritual na relação com o mundo e, como frisaram vários dos especialistas que têm intervindo nas conversas realizadas Feira do Livro deste ano - falo de Helena Carvalhão Buescu, Isabel Pires de Lima, João Barrento, por exemplo - , o romantismo é também próprio do tempo contemporâneo, mantendo-se vivo em diversas obras e mesmo na forma de concebermos o lugar em que vivemos ou na forma como nos relacionamos com a natureza, o tema romântico por excelência.
Em 2017, a autarquia investiu cerca de meio milhão na casa (85% com fundos europeus). Fez tábua rasa desse investimento?
Certamente que não! Esse investimento, em grande medida estrutural, serviu para reabilitar um edifício em muito mau estado de conservação, nomeadamente a cobertura ou a renovação integral da rede elétrica, tornando-o mais apto a receber obras de arte em segurança. Beneficiamos hoje desse investimento.
Sendo o Museu um dos raros exemplares do romantismo em Portugal - que reflete um período de expansão económica no Porto, como não houve então em nenhuma outra parte do país -, não deveria ter havido, por antecipação, um diálogo maior com a cidade?
Apresentámos à cidade o nosso projeto de refundação do Museu da Cidade e criámos plataformas de debate cuja ativação foi, é certo, fortemente perturbada e limitada pelo período de confinamento e de restrições sanitárias que atravessámos.
É bom lembrar que o Museu foi apresentado em fevereiro de 2020 e que a pandemia chegou a Portugal um mês depois, tudo fechando. Apesar disso, o trabalho de preparação da remodelação do espaço foi longa e cuidadosamente refletido.
Para além disso, havendo uma forte relação do projeto com a Feira do Livro desta ano, que melhor contexto para discutir pluralmente a época romântica e a sua persistência no nosso tempo?
Quando se fala deste Museu, fala-se invariavelmente do Rei Carlos Alberto, que
não escolheu o Porto para viver, teve apenas o infortúnio de ter-se sentido mal a
meio da viagem para o exílio, acabando por vir aqui morrer. Mas, por um lado, ele foi também o avô da Rainha Dona Maria Pia e, por outro, esta foi a propriedade da família Ferreira Pinto Basto, fundadora da Vista Alegre. Não atribuiu qualquer peso simbólico a isto?
Atribuímos o valor histórico e simbólico que esses factos têm, que é muito relevante, por isso mesmo a evocação do saudoso Rei foi ali mantida durante longos cinquenta anos.
A Extensão do Romantismo faz parte de um todo, que é o Museu da Cidade. A
sua próxima intervenção será na estação Casa-Museu Guerra Junqueiro. Essa
transformação vai representar também aquilo que agora é tomado como sendo uma conversão de uma casa-museu numa galeria de arte contemporânea?
Acho totalmente descabida, conforme já o disse, essa perceção. O nosso trabalho, a nossa visão, não é a de montar galerias de arte contemporânea. Temos uma, a Galeria Municipal, que desempenha muito bem o seu papel.
O nosso trabalho passa por pensar e discutir um museu para o nosso tempo. Nesse sentido, tendo o Museu da Cidade espaços muito diversos, com tipologias diversas e com histórias também elas diferentes, a nossa missão é orientada por dois eixos: uma
coerência e preocupação de qualidade expositiva e museográfica, criando as
melhores condições possíveis para a experiência do visitante (pensando também
nas diferentes formas de acessibilidade); o trabalho específico a cada contexto e parte da coleção patente em cada espaço.
Nesse sentido, a Casa Guerra Junqueiro, tal como a Casa Marta Ortigão Sampaio, que se adequam mais a um conceito de Casa-Museu, serão intervencionadas sim mantendo, porém, a sua identidade e preservando o seu universo de obras que dizem respeito aos colecionadores que as reuniram.
Tem dito que o Museu do Romântico já não cumpria o seu papel, suponho que
por ser uma realidade estática. A sua proposta passa mais pelo conteúdo?
O programa da Extensão do Romantismo será muito amplo. Em primeiro lugar, retomamos uma tradição que acontecia já no Antigo Museu Romântico, mas agora com maior sistematicidade, que é a dimensão musical do espaço.
Ali, conforme já referi, teremos uma forte programação musical, baseada no repertório romântico. No salão da casa mantivemos o piano e ali instalaremos um outro, instrumentos que constituirão a base do extenso e regular programa musical que desenvolvemos.
Por outro lado, as remontagens serão sazonais, integrando diferentes aspetos do Romantismo, diferentes peças da nossa coleção, convocando autores já desaparecidos, mas também vivos, do nosso tempo.
Tratar-se-á de um programa plural, em que faremos dialogar gerações de artistas românticos e, com a ajuda de diferentes especialistas de diferentes campos do conhecimento, exploraremos o vigor do romantismo na cidade, e para além da cidade.
A petição que exige a reposição do espaço já ultrapassou as mil subscrições. Rejeita os termos do que lá está escrito?
Rejeitamos liminarmente esses termos. O que estamos a operar é precisamente a conservação e o estudo desse património. Há muito trabalho invisível, da parte da equipa de conservação e restauro do município, com a qual aliás encetámos um trabalho de formação de outros conservadores recentemente.
É preciso capacitar espaços para o efeito, e por isso mesmo iremos realizar obras
de requalificação no Abrigo dos Pequeninos, nas Fontainhas, com o intuito de o tornar uma reserva museológica com condições para acolher uma parte do acervo municipal. Este espaço, fechado há sete anos, terá esse destino: o de ser um fiel e habilitado depositário.
Tem, sob a sua alçada, quase duas dezenas de espaços museológicos da cidade.
Não sente que é poder a mais para um homem só?
Conforme o concebemos e apresentámos à cidade, e já discutimos em mais
do que um fórum, o Museu da Cidade é um espaço baseado em princípios de multiplicidade e de diversidade. O desafio que Rui Moreira, presidente do
Município e vereador da cultura, me lançou foi o de dar unidade e coerência a este
conceito de museu-rizoma, fragmentado pela cidade.
Estou integrado numa equipa muito qualificada em diferentes áreas de conhecimento e especialização, não trabalho sozinho. O meu papel é de propor uma visão, de orientar, de estimular, e de zelar pela coerência programática do projeto.
O projeto é muito discutido internamente e externamente. Dou o exemplo do Reservatório, que abrimos recentemente no Parque da Pasteleira, em que tivemos a colaboração ativa de 18 arqueólogos, especialistas de diferentes épocas e temas - Rui Morais, Manuel Real, Assunção Araújo, António Manuel Silva, Isabel Osório, entre tantos outros - para além do trabalho desenvolvido com os arquitetos responsáveis do projeto para o edifício e do projeto museográfico.
O mesmo acontece com todos os nossos projetos e espaços do Museu da Cidade. Diria que sou a pessoa responsável por congregar forças, gerir esforços, conduzir energias, honrar o conhecimento dos vários protagonistas envolvidos nesta nobre e entusiasmante tarefa que é montar um museu à escala da cidade. Trata-se de um museu-em-construção que está apenas no seu início.