Há uma espécie de aprendizagem dos corpos em "L"affadissement du merveilleux", peça de 2018 da coreógrafa canadiana Catherine Gaudet que esteve esta quarta-feira em cena, online, no Festival Dias da Dança.
Corpo do artigo
Uma aprendizagem individual, que lida com a anatomia específica de cada corpo e as suas respostas às sensações de que faz eco; e uma aprendizagem universal, que tende a orientar o corpo para a mimetização do que o rodeia - os outros corpos e as convenções, sejam elas naturais ou culturais. Entre esses dois processos há tensão, dor e epifania.
Talvez tudo seja uma grande metáfora da experiência da maternidade por parte da coreógrafa, que admitiu ter pensado o espetáculo à luz desse "mistério da vida". E há mesmo um momento em que os cinco intérpretes - Dany Desjardins, Francis Ducharme, Caroline Gravel, Leïla Mailly e James Phillips - se comportam como recém-nascidos, berrando e inventando gestos. E ainda outro em que parecem traduzir a experiência do parto, com gritos que balançam entre a dor excruciante e o prazer compulsivo.
Mas antes disso parece haver a consciência de um determinismo - o da "biologia", que Catherine Gaudet vê como fascinante nos seus ciclos intermináveis, mas também como prisão que nos submete a regras restritas. Os primeiros dez minutos de "L"affadissement du merveilleux" são feitos de lentidão sincronizada, com os intérpretes descrevendo pequenos círculos no palco branco e vazio. Nesse "ralenti" coletivo, que recorda os movimentos de alguns espetáculos de Bob Wilson, onde se captava cada nuance de uma emoção e algo a que Thomas Mann chamou de "experiência material do tempo", vão emergindo pequenas variações nos corpos dos intérpretes que põem em causa a unidade coreográfica.
Progressivamente parecem descobrir-se como instrumentos que revelam estados individuais. E a cada expressão de surpresa, receio, orgulho, desgosto, alegria, abandono, êxtase ou terror, o conjunto vai deslaçando. A gestualidade acelera e chegam a formar-se dois pares que dançam expansivamente, ficando o corpo restante em torpor. A música de Antoine Berthiaume, peça fundamental do espetáculo, acompanha todo o ritual e suas metamorfoses, começando por uma toada minimal repetitiva e evoluindo para uma tensão à beira da catarse.
Percorrendo toda a paleta de emoções humanas, em movimentos que oscilam entre a evasão do conjunto e a tentativa de novas afinações coletivas, os intérpretes terminam em suspensão, formando um quadro vivo de expressões individuais.