Um livro, quatro poemas, um inédito, a última entrevista e a página oficial. Todos os caminhos, hoje, vão dar a Joan Margarit.
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Quase no final do ano passado, a Flâneur anunciou que iria editar, a meias com a Língua Morta, uma antologia de Joan Margarit. Iria chamar-se "Misteriosamente feliz". Quando a Flâneur, livraria-milagre do Porto, anuncia que vai editar um livro, há logo um fremitozinho que começa a crescer dentro, porque, de experiência, se sabe que alguma coisa vai deixar-nos ali colados para sempre. Em novembro, quando saiu, a capa, com uma pintura de Pieter Bruegel, remeteu-nos imediatamente para um outro livro obrigatorio de poesia que a Língua Morta editara um ano antes: "Acho que vou morrer de poesia", de Nicanor Parra, o incomparável poeta chileno que morreu em 2018, aos 104 anos. O denominador comum poderia ser obviamente a poesia, mas não é - é aquela maravilhosa estética da capa, a de Parra tem uma pintura de Piero di Cosimo.
Margarit, poeta catalão, prémio Cervantes 2019, morreu esta terça-feira, em Barcelona, aos 82 anos. E já todos sabíamos que corríamos o risco de o perder, porque havia ali um cancro a roe-lo. "Tenho um linfoma para tratar", revelou, numa entrevista ao "El País", em dezembro passado. "Não sei se vai acabar bem. Mas tenho 82 anos e não me sinto traído. Se correr mal, vou morrer aos 83, grato pelo resto da vida." Não vai pedir o livro de reclamações?, perguntou o jornalista. "Claro que não! Escrevi 67 poemas durante este período de confinamento. A poesia salvou-me."
São poemas de solidão e perda, de ausência e morte. "Poesia e música", disse o poeta, citado pelo diário espanhol, "são os principais instrumentos de consolo que o ser humano tem na sua solidão, aquela solidão a que está sempre condenado, mesmo que tenha os seus entes queridos mais próximos, o primeiro cinto dos afetos".
Miguel Filipe Mochila, que selecionou o traduziu os poemas de "Misteriosamente feliz", escreveu que "é impossível não lermos estes poemas como aquilo que também nos são: testemunho e testamento." E continua: "A forte dimensão moral da poesia de Joan Margarit ganha aqui concisão e agudez notáveis. Traz a vida por dentro, com a evidência do menos lírico dos tempos, o último, que é também o da lucidez sem nenhuma espécie de autocomplacência, da intimidade da memória, da procura de salvar o que se amor, de habitar as feridas, dos trabalhos de amor, da poesia como território da beleza e da verdade."
No primeiro dia do resto da vida sem Margarit, partilhamos a pagina oficial do poeta bilingue catalão/ castelhano, a última entrevista que deu ao El País e três excertos de poemas que merecem absolutamente ser lidos.
Poesia
Como para Sísifo,
a vida para mim é esta rocha.
Carrego-a e conduzo-a até ao alto.
Quando cai volto a apanhá-la
e, tomando-a entre os braços,
levanto-a outra vez.
É uma forma de esperança.
Penso que teria sido mais triste
se não tivesse podido arrastar uma pedra
sem outro motivo que não fosse o amor.
Levá-la por amor até ao alto.
Trabalhos de amor
O motivo tanto faz.
É preciso procurar o que sobreviveu entre os restos.
Poderíamos sentir-nos mais seguros,
se os nossos sentimentos
são territórios de fronteira
perdidos, recuperados, outra vez perdidos?
Porque amar não é apaixonar-se.
É voltar a construir, uma e outra vez,
o mesmo pátio para ouvir os melros
quando na Primavera ainda é de noite.
Atrás dos vidros
Partir é esta paixão
que chega tarde. Que pode ser violenta.
Somos parte de alguma música. Muda,
e há que saber ouvir aonde nos leva.
Ás vezes tem acertos misteriosos.
Mas agora é uma música difícil.
Abstracta e dissonante, impele-me a partir:
é a sedução final da esperança.