"Oráculo", peça de Sara Anjo e Teresa Silva que propõe uma adivinhação, estreia esta quinta-feira em Serralves. JN falou com as duas coreógrafas.
Corpo do artigo
"As palavras e a magia foram, no princípio, uma e a mesma coisa", disse há mais de 100 anos o neurologista Sigmund Freud. O médico austríaco foi adepto da hipnose como forma de acesso aos conteúdos mentais dos seus pacientes e criou no século XIX um método revolucionário de tratamento: a psicanálise, ou seja, a cura pelas palavras.
Acreditava Freud que a nova ciência ia devolver às palavras o seu poder mágico, um poder originário da psique, isto é, da alma. Não quererá isto dizer, necessariamente, que a alma é feita de palavras ou que esta se estrutura como a linguagem, mas que talvez exista na alma algo que anuncia e sustenta nas palavras esse poder transformador.
Sem nunca ser diretamente citado, Freud é uma espécie de espetro que habita "Oráculo", peça de Sara Anjo e Teresa Silva, coreógrafas e bailarinas, em destaque esta quinta-feira no festival portuense DDD - Dias da Dança, com estreia ao vivo no Auditório de Serralves (20 horas).
Uma forma de adquirir o Mundo
O teatro, como os vates e também os poetas e os atores, isto é, os que predizem acontecimentos ou que pretendem possuir visões sobre as coisas passadas, presentes ou futuras, é também uma forma de hipnose e de vidência?
"Sim", responde Sara Anjo, "o teatro é uma forma de conhecimento, de saber, de aquisição do Mundo, portanto é uma forma de vidência". Acrescenta Teresa Silva: "E o teatro é um lugar especial onde essa vidência tem a particularidade de poder ser apreendida em conjunto por toda a gente que ali estiver ao mesmo tempo. Mas o teatro é um lugar raro: todos vemos o mesmo que nos é apresentado, mas todos vemos coisas completamente diferentes".
Pode o nosso próprio corpo ser um oráculo? - pergunta a peça. Mais do que responder, o espetáculo "quer observar, escutar, interpretar sinais e símbolos de forma a criar possibilidades". Ou seja: "Oráculo" olha para nós, os espectadores, e, encontrando-nos deitados no divã coletivo que é a plateia, tenta perceber o nosso futuro, apontando aquilo que reverbera no nosso presente.
"As perguntas são o nosso motor, não nos largam", diz Sara Anjo ao JN. "E quais são as perguntas que habitam em cada um de nós?", pergunta Teresa Silva. "É sobre isso que vamos discorrer".
Sentido ampliado pela pandemia
A peça, muito mais falada do que dançada, encena connosco esse jogo.
"Oráculo", enuncia Sara Anjo, "é um sistema de procura de respostas, de perspetivas, é uma tentativa de criar esse sistema e esse lugar na caixa mágica do teatro". "O oráculo é o canalizador da visão", acrescenta Teresa Silva, expondo a ambição da peça: "O oráculo está dentro de nós com as respostas para o Mundo. É o nosso corpo que contém o sentido do Mundo".
Para jogar o jogo da vidência, as coreógrafas vão socorrer-se das cartas da adivinhação, como no Tarot. Elas entram imediatamente em cena, com o baralho disposto no chão, e vão interagir connosco, ultrapassando a quarta parede que separa o palco da plateia. "Escolha uma carta", dirá Teresa, que depois se porá a ponderar as hipóteses e sentidos das cartas para cada um.
Estreada em março de 2020 no Teatro do Bairro Alto, no âmbito do Festival Cumplicidades, "Oráculo" teve apenas duas récitas e foi depois engolida pela pandemia, com várias datas canceladas. A paragem e reencenação, amplia agora o sentido da peça. "Numa pandemia não sabemos literalmente como vamos viver o amanhã", diz Teresa Silva. "Para nós, a ideia de suspensão do futuro remete-nos para o presente imediato, para a importância do que está acontecer agora". Mas, junta Sara Anjo, "a pandemia também amplia a nossa dificuldade, como espécie, como humanos, de vivermos plenamente o presente".
Caixa mágica e antecâmara de salvação, o Teatro que acolhe a peça terá, assim, uma nova dimensão plástica e poética como lugar coletivo de hipnose e de vidência.
"Oráculo" estreia ao vivo esta quinta-feira, 22 de abril, no Auditório do Museu de Serralves, no Porto, às 20 horas, repetindo a récita no dia 27 no Teatro Municipal Sá de Miranda, em Viana (20.30 horas). Nos dias 23, 24 e 25 de abril, a peça, que tem a duração de 50 minutos, estará disponível para visionamento na sala virtual do DDD (bilhetes a 3,50 euros).