Rapper de primeira linha e no pico dos seus poderes, o norte-americano não tocava no Porto há nove anos. O regresso foi triunfante e nada mais parece importar.
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Ele está sozinho em palco, absolutamente sozinho, o palco é gigante e ele parece pequeno, um senhor pequeno, Kendrick Lamar - é a primeira coisa em que reparamos. Depois: não há banda, não se vê um único músico, não se vê um instrumento sequer, nada está a ser tocado ao vivo, nada, o que dali vai sair em direto é só a voz dele para nós. De vez em quando entram bailarinos, são uns seis, todos homens, mas não parecem bailarinos, parecem operários e trazem aventais - e às vezes nem dançam, só desfilam, correm a passarela sozinhos e resolutos ou enfaixados uns nos outros, nada de mais, são coreógrafos minimais, aparecem e logo desaparecem e Kendrick continuará sozinho naquele palco fundo e negro e gigante.
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Mas nada disso parece importar, não importa, é no que reparamos logo a seguir. Não nos passa pela cabeça questioná-lo, ele tem aquilo que se designa misteriosamente por presença, uma presença tão real que parece galáctica, como se ele fosse transparente e simultaneamente imperscrutável, tem isso, e esse poder é de tal ordem que sentimos - não sentimos só, sabemos e sabemos ilimitadamente na cabeça e no coração - que ele domina tudo, todos, toda a situação. E que pode evidentemente fazer de nós o que quiser.
A rapar à chuva, a pingar de pasmo
Vai tocar mais de um hora, quase hora e meia a rapar, e chove, a chuva é oblíqua, vem tocada de leste, vem de trás de nós, ali é o Palco Porto, é o novo palco maior, é plano, é uma pena ser plano, perdeu-se profundidade e visão, é agora o único palco do Primavera sem colina, mas põe-nos a olhar para a Anémona e para o mar, para oeste, é magnífica a Anémona de Janet Echelman, ela move-se, está toda ensopada e move-se, move-se como se se comovesse como nós.
E está ali Kendrick a rapar, Kendrick Lamar, vê-lo é pasmar, a cenografia é bonita, tem por detrás telas gigantes de pintores naif negros que vão caindo como cortinas, a luz é esparsa mas cuidada, muito delicada. Às vezes há pequenas deflagrações de fogo, explosões súbitas de strobe, mas muito rápidas, muito brancas e subtis, ou luzes negras e florestais, há jatos de fumo na boca do palco, fios de luz de cores fortes, as luzes bailam como centro de veludo, tão finas, finas como bisturis, fatais.
Foi há nove anos e ele continua a crescer
Vimos Kendrick aqui a primeira vez no Primavera Sound Porto há nove anos, era de noite mas parecia que fazia sol, tinha ele 26, ainda só tinha dois discos, "Section.80" e "Good Kid, M.A.A.D City", mas já era um senhor rapper, sim senhor, entrou e domou-nos logo, cantamos logo com ele os "hits", de rajada, gargantas a jorrar todos os versos de cor, "Poetic justice", "Money trees", "M.a.a.d city", "Bitch, don't kill my vibe", tornou a tocá-las outra vez, que catarse foi o "Bitch, don't kill my vibe", que bela purga, "I am a sinner who's probably gonna sin again, lord forgive me", cantava ele, que bela expiação.
E Kendrick continua a crescer, já tem 35 anos, já ganhou 17 Grammys, tem tanto futuro e já tem tanto para recitar para trás, discos inteiros que continuamos a descobrir, "To pimp a butterfly" (2025), "Untitled unmastered" (2016), "DAMN" (2017) - "DAMN" é uma obra-prima do rap em cinemascope, é uma narrativa megascópica do destino afro-americano na América, está cheio de humanidade, de batidas luxuosas, de rimas furiosas, é o disco que o decretou imortal, que lhe deu um Prémio Pulitzer, Kendrick é o único rapper da história que já ganhou um Pulitzer -, mais "Mr. Morale & the Big Steppers" (2022), o disco que o expande em várias direções e experimentação, jazz, soul, rock, R&B, é o disco da seriedade, da gravidade confessional, ele toca temas dos discos todos, sozinho num palco gigante. E nós somos um só, uma só massa una e líquida a mover-se só para ele, braços levantados nas vagas no ar, a ir e a vir na rebentação, um mar aos pés dele e do seu set triunfal.
Uma criança grande a dançar como um bumerangue
Mas depois ainda reparamos mais o quanto Kendrick é peculiar. Não é um portento físico, não tem sex appeal, é ligeiramente encorpado, o seu corpo parece espesso, boleado, e não é nada alto, 1,67 metros, pouco mais do que a média da mulher portuguesa, que mede 1,63.
Além do mais, não deixamos de reparar: veste-se como uma criança, uma criança com óculos e a quem vestiram roupa absurda XXL, calções largueirões, jaqueta a adejar, vem todo vestido de cor de laranja, um laranja vivo da cor do cinema americano prisional, mais um boné ao contrário, pala para trás, mais as sapatilhas e as meias brancas, as meias muito puxadas na canela. Mas há qualquer coisa nele que irradia, é uma coisa misteriosa, uma exalação tranquila, muito digna e ninguém pensa que o seu figurino possa ser ridículo.
E depois ainda mais: Kendrick é um rapper mas não faz os gestos típicos dos rappers, nada, não faz os chifres nem os vetores, não levanta dedos eretos do meio, não faz as pistolas, não ameaça, não aponta o dedo a ninguém, nada disso é nele necessário para que acreditemos que é um rapper. E não corre, nem salta, não faz gestos obscenos, só caminha incessantemente, ou melhor, desliza, parece que está a deslizar. Às vezes rodopia, só rodopia, joelhos fletidos, os braços abertos em arco, e move-se como um bumerangue infantil, um bumerangue lento, um bumerangue que regressa sempre a si próprio.
É carismático, Kendrick, é essa a definição, tem prestígio, sabe ascender, seduzir. Mas o seu carisma é um carisma sereno, vem sem suor, é simples, desafetado, é informal, natural. E no entanto tem grandiosidade, esplendor, é magnificente, não se questiona, não sabemos bem o que seja - será realeza? -, mas aceitamos como é, é uma dádiva primordial. E às vezes aquilo é erudito, mas é sempre popular, espantosamente popular, e é muito bonito, mesmo que continue a chover.
"Pôrtô, eu preciso da vossa energia!"
Referência altíssona da palavra rimada, os versos escorrem-lhe a grande velocidade, recita e fá-lo com intensidade, com rapidez, com certeza, em duplos tempos, triplos tempos, a sua língua é oceânica, unificadora.
E ele diz "Pôrtô, make some noise!", e nós fazemos barulho, "make some mother fucking noise!", e nós fazemos ainda mais. Ele há de fazer isso mais vezes, ele tem-nos na mão, vai dizer "Pôrtô, eu preciso da vossa energia!", vai dizer "vocês têm que estar despertos, Pôrtô!", vai dizer que "esta é uma ocasião especial, há muito tempo que não estava num palco, nunca tomem a vida por garantida, vocês aqui por mim à chuva, tenho o melhor público do mundo", e nós, todos ensopados na relva encharcada, caras a pingar, copos pingados, a cheirar como cães molhados, respondíamos ao profeta como num missal, como um coro responsorial, a réplica na ponta dos dedos de "Humble", de "Backseat freestyle", a recitar os versículos de "Sidewalks", do The Weeknd, a gritar "pussy, power, profit", sobretudo os mais novos, foram os mais novos que encheram de 40 mil pessoas o primeiro dia, os mais novos e os pais deles que vieram com eles, todos juntos a desfiar "sex, money, murder" e outros pecados precípuos.
E ainda cantou Drake, "Swimming pools", e "Loyalty", e "Purple hearts" e ainda chamou Baby Keem, o seu primo de 23 anos que tocara a solo, também sozinho em palco, duas horas antes, para os ouvimos em "Range brothers", as batidas gordas a enrolarem-se nos quadris.
Olhar para ele foi como olhar diretamente para o sol, é uma coisa que queima, uma radiação que entra, perfurante, irremissível, irreversível, e fica tatuada no coração.
E depois ele saiu, foi subitamente, ou assim pareceu, eram quase duas horas da manhã, foi como num "mic drop", foi de repente, foi quase um anticlimax, e ele ainda diz, antes de nos internar na penumbra posterior, todos a sair ordeiros numa enxurrada só, agora sim, molhados até aos ossos, os ossos tristes sem o seu rei-sol: "Obrigado por terem vindo. Vocês podiam estar em qualquer sítio do mundo e estiveram aqui. Eu amo-vos, eu vou voltar".