Depois de "O relatório de Brodeck", Manu Larcenet propõe a sua leitura de "A estrada" a partir do romance negro de Cormac McCarthy.
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Um homem e uma criança empurram com dificuldade um carrinho de supermercado ao longo de uma estrada. São pai e filho, mas a condição de sem-abrigo que intuíamos revela-se errada. São sobreviventes de uma catástrofe inexplicada e arrastam-se, passo após passo, na ilusão de um local melhor.
Há anos, Manu Larcenet deu-nos um violento soco no estômago com a sua visão de "O relatório de Brodeck" (Ala dos Livros, 2021), de Philippe Claudel; agora, nesta recriação de "A estrada", de Cormac McCarthy, Pulitzer em 2007, consegue também violentar-nos. E deixar-nos de rastos.
Ambientado num futuro indefinido, numa Terra devastada, em que apenas se sobrevive - mas a que preço! -, "A estrada", editada pela Ala dos Livros a par da edição original, é uma daquelas narrativas que apanhamos a meio e nos deixa antes de ser atingido um fim, e em que vemos o que resta da Humanidade a tentar manter a réstia de humanidade que lhe resta...
Larcenet opta de novo por um traço realista, duro, agreste, visceral mesmo, num preto e branco contido mas profundamente revelador, tingido aqui e ali de suaves tons amarelo-alaranjados na chama de uma lamparina ou no metalizado de uma lata de Coca-Cola, breves vislumbres do que um dia foi a vida que apenas tornam mais opressivo o ambiente pós-apocalíptico que ele recria.
E recria, sim, porque a sua visão da obra de McCarthy tem muito de pessoal e original, pois dá forma e feitio ao pesadelo que o livro apenas descreve, tornando mais palpável, próxima e real a violência, física e psicológica, profundamente incómodas e chocantes, que o leitor prolonga ao preencher com mais horror o espaço em branco entre as vinhetas que desfilam com lentidão atroz pelo prolongar da angústia e da insanidade que transbordam de "A estrada".
Entre o pai e o filho há uma imensa cumplicidade, mesmo que aquele sobreviva para garantir que poupará o filho do pior, de forma definitiva, se tiver de ser; há rotinas já criadas a olhar precavidamente para todos os lados, num mundo em que são os restos, o lixo que arrastam com eles, que podem definir a sobrevivência ou não. Como diz a criança, mais do que uma vez, eles são "os bons", mas também há "os maus". Aos nossos olhos, o que os distingue, é se já cederam completamente à selvajaria latente... ou ainda não.