Depois de 20 anos a circular por diferentes salas e bares, a companhia portuense encontrou poiso no remanso da Travessa das Águas. Desde então, realizou 84 eventos.
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Hoje é data gorda na Travessa das Águas, pequena via de casas térreas na zona oriental do Porto que acolhe, desde há um ano, O Lugar, espaço que permitiu à companhia Palmilha Dentada deixar de andar "com a casa às costas" e servir as suas produções em morada própria. Não só as suas, de resto: num ano de atividade, houve 84 eventos, entre espetáculos da Palmilha e de outras companhias, concertos, oficinas, debates e leituras, a que assistiram 2355 espectadores, numa média de uma sessão a cada quatro dias.
Foi a uma espécie de aldeia que o grupo chegou a 13 de novembro de 2021. "Fomos recebidos com bifanas oferecidas por uma vizinha. É uma zona com famílias que vivem cá há décadas e há também muita gente ligada às artes nas redondezas", diz Ricardo Alves, um dos fundadores do grupo e o habitual dramaturgo. "Tem sido uma relação produtiva e de mútuo respeito", explica. "Alguns miúdos da vizinhança participam nas nossas oficinas; do nosso lado comprometemo-nos a não fazer espetáculos depois das 19.30 horas".
O Lugar é simples de descrever: tem uma peça cenográfica à porta - um peixe gigante - e uma pequena sala para 50 espectadores. É um teatro íntimo, um tipo de local que faz falta à cidade, diz o criador. "Há poucos espaços para as jovens companhias fazerem asneiras e loucuras. Tentamos mitigar essa carência, mas ainda seriam precisos mais nove lugares destes".
Agenda repleta
Nessa missão de acolhimento, que já levou ao Lugar grupos como Limite Zero, Musgo, Ervilha, Coletivo Selvagem ou Contilheiras, não existe "grande filtragem", diz Alves: "Desde que não sejam propostas neonazis, cabe quase tudo: qualquer género teatral ou evento que se possa adaptar ao espaço. Aceitamos o risco - é fundamental haver lugares de experimentação para quem está a começar".
Com o calendário de eventos fechado até agosto de 2023 (o que dá nota da procura por este tipo de espaços), O Lugar instituiu já uma série de rubricas fixas, como O Encontro do Conto (vocacionado para o público infantil), O Lugar da Fala (para reflexão sobre o teatro e as artes) ou O Lugar do Outro (aberto a companhias profissionais, grupos informais e de estudantes).
Erguido graças ao apoio da DGArtes e do Garantir Cultura, o local serve também de base à companhia criada em 2001. No seu eixo está Ricardo Alves, mas também os atores Ivo Bastos e Rodrigo Santos, além de outros colaboradores e atores que foram participando em diversas produções. É um grupo singular no panorama nacional: teatralmente culto, dominando todos os discursos e conceitos, notabiliza-se pela sabotagem de tudo o que soa a pomposo e presunçoso, além de recorrer à atualidade como matéria humorística desde os alvores, quando circulava por bares com o seu café-teatro (formato que Ricardo Alves quer recuperar).
"Ter espaço próprio permite-nos fazer carreiras longas com os espetáculos, que é a única forma de chegar a novos públicos. Por isso, gosto de ver cadeiras vazias: é sinal de que aguardam novos espectadores. Melhor isso do que duas ou três sessões esgotadas sempre com os mesmos, como sucede com os teatros municipais", diz o dramaturgo.
Estreia a caminho
O programa que assinala o aniversário de O Lugar prossegue até ao final do ano com a estreia do espetáculo da Palmilha Dentada, "Conto das duas aldeias", dia 26, que convoca contos populares e marionetas para abordar o tema do acesso à água. Ainda este mês, haverá um encontro com "o pior contador de histórias do Mundo", Rodolfo Castro, nos dia 19 e 20. E uma sessão de debate com agentes culturais focada no impacto da cultura em diferentes territórios, no próximo dia 22.